quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O pré-sal é amanhã

Julio Gomes de Almeida e Luiz Gonzaga Belluzzo
As descobertas de grandes reservas de petróleo e gás na chamada camada pré-sal, localizada a uma profundidade de 5 mil a 7 mil metros, tanto podem descortinar um futuro brilhante para os brasileiros quanto submeter o País a um processo de empobrecimento econômico e de anomia social. O Brasil passa a dispor de uma riqueza de grande valor, com potencial mais do que suficiente para acelerar o crescimento econômico e assegurar o bem-estar de seu povo. Mas entre as descobertas e a efetivação dessas potencialidades, entre a taça e os lábios, o líquido pode derramar. As condições para a concretização das promessas são muitas. A primeira e mais óbvia é a capacitação tecnológica, condição cumprida com competência pela Petrobras. A segunda é de origem externa: as flutuações no preço internacional do petróleo determinarão os valores do excedente a ser apropriado pela sociedade por conta da exploração dos enormes campos de petróleo.
A “maldição do petróleo” é uma expressão que procura sintetizar os riscos implícitos na abundância de uma riqueza natural. Uma bênção capaz de gerar pobreza, violência e desigualdade. Para não deixar que esses agouros se realizem é necessário definir um modelo cuidadoso de exploração e utilização da nova riqueza representada pelas reservas do pré-sal. Esse modelo deve abrigar alguns pontos fundamentais. A inobservância de um só deles pode acarretar consequências indesejáveis. A regulamentação atual do setor não é compatível com a abundância. Ela foi concebida para a escassez, “para se achar petróleo”. Por isso, tomou por base o “modelo” de concessão. Sob esta modalidade jurídica são licitadas áreas para prospecção de empresas interessadas, que por sua conta realizam os investimentos requeridos. Muito maiores do que as áreas já sob concessão, os campos recém-descobertos impõem o sistema de partilha da produção entre o Estado – detentor das reservas em áreas ainda não licitadas – e uma companhia do setor, que, em princípio, pode ser a Petrobras ou uma empresa privada qualquer. Naturalmente, nada deve mudar quanto aos projetos já em andamento, cujos frutos de exploração pertencem às empresas detentoras das concessões.
O sistema de partilha permite a apropriação da riqueza por parte do Estado em nome da sociedade. A riqueza do petróleo é apropriada sob a forma de impostos e royalties, como, aliás, é o modelo brasileiro vigente. Esse padrão de tributação pode conviver com o sistema de partilha, mas no caso brasileiro se faz necessário alterá-lo pelo menos em dois aspectos: 1. A tributação deve aumentar. 2. A atual regra de distribuição dos recursos tributários obtidos com a exploração do petróleo entre União, estados e municípios precisa ser revista. Na forma atual, a distribuição favorece sobremaneira os estados e municípios com projeção para os campos de petróleo. Mesmo antes da descoberta das reservas do pré-sal esse modelo já determinava- uma desigualdade acentuada na distribuição dos recursos do petróleo, uma violação clara dos princípios que devem reger o pacto federativo. Mantidas as regras atuais, a riqueza ficará concentrada nesses mesmos estados e municípios, em prejuízo de políticas julgadas prioritárias para o conjunto da sociedade brasileira.
É fundamental, portanto, a mudança no sistema de participação do Estado na riqueza gerada pelo petróleo e, ademais, alterar o modelo de repartição da massa tributária obtida pelo setor público. A concentração nas mãos da União é a condição à universalização das políticas sociais, de investimento em infraestrutura, com regras claras destinadas a reger a utilização dessa riqueza para o desenvolvimento e bem-estar do conjunto das regiões, estados e municípios do País. Mas há muito mais a dizer e a fazer sobre a utilização dos recursos decorrentes da exploração do pré-sal. A avalanche de moeda estrangeira que certamente advirá da exportação de petróleo ameaça tornar incontrolável o vício nativo cevado nas delícias tão sedutoras quanto e viciosas do câmbio valorizado. A “doença holandesa” é a moléstia de uma sociedade que passa a depender de uma riqueza natural e abandona a ideia de que ela é fruto do trabalho, da tecnologia e da agregação de valor.
O ideal para o País detentor de uma riqueza natural abundante seria aplicar no exterior os recursos gerados pelas exportações, utilizando no âmbito doméstico tão somente os recursos gerados nas vendas internas e os rendimentos obtidos das aplicações no exterior. Não por acaso proliferaram e ganharam importância os “fundos soberanos”, muitos dos quais fruto da acumulação de receitas derivadas da exportação de petróleo. Constituir um fundo desse tipo será imprescindível para que o Brasil aproveite integralmente o benefício do pré-sal, sem sucumbir à doença holandesa. As aplicações devem ser conservadoras e de longo prazo, já que se destinam a transmitir para gerações futuras uma riqueza finita que não pode beneficiar exclusivamente a geração presente.
Esses fundos são genuinamente “fundos de poupança”, cabendo complementar que se trata de fundos de poupança de longuíssimo prazo. Como também cabe sublinhar, tais fundos visam obter os maiores rendimentos possíveis em prazos muito longos, não tendo, como no caso da aplicação das reservas internacionais de um país, a necessidade de preservar uma grande e pronta liquidez. Os fundos soberanos, assim, não se confundem com as reservas dos países.
No limite, assegurar que as gerações futuras se beneficiem da nova riqueza exige que as rendas do petróleo apropriadas pelos governos sejam integralmente canalizadas para os fundos de poupança. À geração presente seria franqueado o usufruto tão somente dos rendimentos das aplicações dos referidos fundos, mas não dos recursos apropriados pelos governos sob a forma de royalties, impostos ou outras modalidades de receitas. A aplicação dos recursos do Fundo Soberano no exterior será de grande valia para promover a internacionalização das empresas e dos bancos brasileiros. Bem conduzida, essa estratégia vai conferir ao real o status de moeda conversível.
As aplicações domésticas devem obedecer aos critérios que favoreçam o desenvolvimento sustentado e a criação de condições fiscais aptas a assegurar o financiamento adequado do governo ao longo do tempo. O governo brasileiro anunciou o desejo de conceder prioridade ao desenvolvimento social, sobretudo à educação e à inovação tecnológica, o que nos parece correto. Mas seria igualmente importante apoiar a modernização da infraestrutura e das formas alternativas de energia renovável. Seria, ainda, aconselhável criar um fundo para estabilização das receitas fiscais, com o propósito de atenuar as consequências das flutuações nos preços do petróleo.
A forma institucional mais bem-sucedida de gestão da riqueza proporcionada pela exploração do petróleo é oferecida pela experiência da Noruega. Os noruegueses criaram uma empresa estatal para administrar as participações do governo nos projetos partilhados e a gestão do Fundo Soberano. No Brasil, uma empresa desse tipo cumpriria essas e outras funções, tais como o planejamento da utilização das reservas do pré-sal, a gestão dos recursos destinados a investimentos internos e a promoção de políticas industriais, tecnológicas e de desenvolvimento regional e setorial. Dentre os setores a ser contemplados há que se sublinhar a importância estratégica da própria indústria de bens de capital, de suprimentos e os serviços que abastecem o setor de petróleo.
Enxuta em termos de pessoal e com atribuições claramente definidas, essa empresa teria capacidade para antecipar recursos no mercado e mobilizar fundos para promover a cadeia produtiva do petróleo, além de terminar o ritmo da exploração e financiar novas prospecções executadas por empresas do setor, como a Petrobras. Os pontos centrais são os seguintes: 1. Mudar da concessão para partilha o modelo de regulação do setor. 2. Adaptar e reformar o modelo existente de tributação. 3. Planejar um eficiente sistema de prevenção da doença holandesa, mediante a organização do Fundo Soberano. 4. Definir as regras de utilização doméstica dos recursos, criando uma empresa para gerir adequadamente essa riqueza. 5. Executar políticas sociais e de desenvolvimento comprometidas com a redução da desigualdade e da pobreza.
Todas essas ações são destinadas a libertar o País da crônica dependência do financiamento externo e afastar os choques cambiais que de tempos em tempos constrangem a política econômica.Fonte:CartaCapital.

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