Maria Inês Nassif -Valor Econômico - Se é tentador, porém arriscado, enquadrar no conceito de populismo os governos de esquerda da América do Sul de hoje, como os de Hugo Chavez (Venezuela), Evo Morales (Bolívia), e Rafael Correa (Equador), fazer o mesmo com o presidente do maior país do continente, Luiz Inácio Lula da Silva, é temerário. "Lula pode ter alguns traços de populista, mas é social-democrata", afirmou ontem o argentino Torcuato Di Tella, da Universidade de mesmo nome, no último dia da reunião nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs). "A tradição do PT não é populista, mas socialista com elementos de centro-esquerda à extrema esquerda", disse. Além disso, segundo o cientista político, se o populismo pressupõe apoio de massas trabalhadoras desorganizadas e de uma burocracia sindical descolada das bases, isso também não se enquadra no caso brasileiro. Para ele, o movimento sindical que gravita em torno do governo Lula não teve origem no Estado - não incorpora o "peleguismo", conforme é entendido o sindicalismo de burocracias ligadas ao poder mas descoladas das bases -, mas tem uma dinâmica autônoma ao poder público. Segundo Di Tella, no populismo clássico os governantes vêm de classes altas e ascendem e se mantêm no poder graças a um enorme poder de mobilização das massas. Nas suas raízes, o populismo vem da tradição rural da população que sai do campo para as cidades, incorporando-se às suas periferias pobres. No campo, eles têm três pais: o pai de família, o patrão e o padre. Nas periferias, incorpora o quarto pai, o político "pai dos pobres" - e aí se enquadram, com precisão, Getúlio Vargas, Juan Domingos Perón, da Argentina, na primeira metade do século passado; e, na história recente, Chávez, Morales e Correa. "Não vou falar no Lula", disse seguidas vezes, apenas concordando em emitir opinião quando o simpósio foi aberto a perguntas. E brincou: "Lula é muito popular na Argentina, mas parece que não é muito na Anpocs". Sequer o peronismo, segundo ele, conseguiu figurar como um populismo puro. Na Argentina, Perón assumiu com o apoio de um grupo militar nacionalista, com parte do clero e da indústria. Conforme mobilizava massas desorganizadas, afugentou esses apoios e agregou também uma base sindical "pelega", originária do Estado, mas que, ao contrário da burocracia sindical americana, tinha algum contato com as bases. A capacidade de mobilização das massas afugentou as indústrias mesmo no momento em que elas eram fortemente beneficiadas pela política protecionista do peronismo, que foi perdendo também o apoio da direita militar nacionalista. Segundo o argentino, essas contingências históricas de perda de apoio entre as elites pode ter definido, por exemplo, o fato de Perón ter grande simpatias pelo fascismo mas não ter conseguido trilhar esse caminho - para ser fascista, obrigatoriamente teria de ter apoio empresarial e sustentação militar. "O grande inimigo do fascismo eram as classes operárias organizadas. Se ele queria implantar o fascismo, fracassou, porque esses grupos o apoiaram", disse Di Tella. "Os grandes inimigos do peronismo, na verdade, eram a classe alta e a esquerda ideológica", afirmou. Empurrado por essas forças e inimigos, Perón, ao longo de 20 anos de exílio, os primeiros deles abrigado em países com governos de direita, acabou abandonando convicções direitistas e convenceu-se de que era um grande líder de esquerda. Nessa época, segundo Di Tella, costumava dizer que havia no mundo três grandes líderes: Mao Tsé-tung, Fidel Castro e ele próprio. Vinculou-se aos montoneros, movimento de guerrilha urbana de direita. E a ditadura militar, na sua política de eliminação da esquerda, privilegiou peronistas e seus simpatizantes.
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