Recife (PE) - Há coincidências que não se explicam. No mesmo dia em que o STF derrotava a revisão da Lei da Anistia, por entender que essa lei era fruto de um acordo entre torturadores e torturados, entre homicidas do Estado e vítimas, nesse mesmo dia o livro “Soledad no Recife” abria um seminário na USP sobre Escritas da Violência. Entendam, essa coincidência não é um arbítrio burro do colunista, que estaria ligando fatos distintos sem qualquer relação. O livro que abria o seminário narra um, seis, das centenas de crimes da ditadura até hoje sem punição.
No entanto a coincidência maior viria à noite, durante uma conversa em um restaurante paulista que serve arroz e feijão. Na mesa, a editora Ivana Jinkings, da Boitempo, mencionou de passagem que gostaria de ter mais fotos de Gregório Bezerra, para o livro de memórias do comunista que vai editar. Sim, eu lhe disse enquanto esperava o feijão e bebia uma cachaça, constrangido por beber álcool sozinho como um degenerado, sim, eu lhe disse, esse livro será um best-seller, porque atende a todos os públicos do Brasil. Assim disse porque, como todo autor, olho o miolo do livro, as páginas impressas. Ao que a editora, com o gosto da estética do objeto livro, insistia, “mas eu quero fotos de Gregório nos dias de sua prisão no Recife”.
Para ela, essas fotos exprimem melhor a dignidade imensa do valoroso comunista, e portanto são o núcleo indispensável do seu objeto livro. O filho de Gregório já lhe havia assegurado que existe inclusive um filme, um filme!, exibido na televisão em 1964, cujas imagens mostravam o comunista arrastado pelo pescoço, amarrado em uma corda pelas ruas do Recife. Um ato bárbaro, público, no pacato e civilizado bairro de Casa Forte onde existem árvores centenárias, numa das quais o coronel Vilock esteve a ponto de pendurar Gregório. A isso outro consultor de Ivana teria dito a ela que o filme existiu, mas teria sido “apagado” por conveniência ou para não deixar prova contra o nosso espírito conciliador.
Na volta ao Recife, corri atrás, como dizem os paulistas. Sem esperança, mas teimoso, perguntei por email ao jornalista Ivan Maurício, artista e pesquisador, que me respondeu: “o filme de Gregório Bezerra existe e quem tem cópia dele é José Mário Austregésilo. Acho importantíssimo a publicação das memórias”. Sem respirar, mas com fôlego e paciência, descobri o número do telefone celular de José Mário, e ele me confirmou que, sim, o filme existe, no tempo em que dirigiu a TV Jornal do Commercio procurou preservar a memória política e cultural da cidade, no acervo da televisão existe até o filme do enterro do poeta Carlos Pena Filho. Como resposta apenas consegui suspirar: “Meu Deus”. Então Zé Mário viu que um ateu não pronuncia o santo nome em vão, e que o caso era sério. Então ele me passou o nome do responsável atual pelo arquivo da TV Jornal do Commercio.
Em resumo. Ao fim do dia, na terça-feira, passei um email para a editora com estas informações:
“Desde a manhã de hoje que passo email, ligo e pesquiso com jornais, fundação Joaquim Nabuco, celulares, etc. Resultados até aqui:
1. O filme existe - na TV Jornal do Commercio do Recife. O problema é localizá-lo. Deve estar em Super 8, ultra delicado ao manuseio. Nesse fim de semana, o responsável me responderá se é possível localizá-lo.
2. De qualquer maneira, irei ao Jornal do Commercio, onde devem existir pelo menos duas fotos de Gregório em 1964. Disseram que é pago, claro, e eu respondi ‘tudo bem’. Não irei amanhã porque esse é o dia da minha coluna pro Direto da Redação.
3. No Diário de Pernambuco eles TÊM a foto, aquela foto que você possui em má qualidade. Segundo me informou o funcionário no CEDOC a foto está em muito bom estado. Mas a comercialização tem que ser feita via Brasília. Pelo que o funcionário me disse, trata-se da mesma foto de Gregório sentado, sem camisa”.
Ao que me respondeu a editora:“Que grande notícia! dá uma certa esperança, agora. Vamos torcer pra que encontres esse filme”.
No momento em que escrevo esta coluna, acabo de ligar para a coordenadora do arquivo do Jornal do Commercio, e ela me informou uma nova esperança: existem mais que duas fotos de Gregório Bezerra nos dias de sua prisão em 1964, e com boa qualidade técnica. Ainda não é o filme, mas por Deus.
Talvez o que chamamos de coincidência sem explicação seja uma prova do que Hegel já havia notado: “o verdadeiro tem a natureza de eclodir quando chega o seu tempo, e só quando esse tempo chega se manifesta”.
A imagem oculta de Gregório pode voltar no ano do julgamento da anistia no STF.
Publicado no Direto da Redação, http://www.diretodaredacao.com/
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