Rogéria Araújo - Jornalista da Adital - Adital
Hoje (28) completam dois anos do Golpe de Estado em Honduras. Apesar da recente assinatura do Acordo de Cartagena das Índias, que propiciou o retorno do presidente deposto, Manuel Zelaya, e o reingresso do país à Organização dos Estados Americanos (OEA), Berta Cáceres Flores, Coordenadora Geral do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH), afirma que os efeitos do golpe ainda permanecem no país.
Em entrevista à ADITAL, ela criticou a forte militarização estrangeira em Honduras, relatou que continuam as perseguições políticas e as violações de direitos humanos e criticou o papel da OEA. Confira a entrevista.
ADITAL - Ao cumprir dois anos do Golpe de Estado instaurado em Honduras, que consequências a militarização no país continua oferecendo para a população?
Berta Cáceres Flores - Por um lado permanece a política de fortalecer as forças repressivas tanto policiais como do exército, a quem foi concedido aumento nos orçamentos em diferentes ocasiões, o último foi a aprovação de acusações de um imposto obrigatório para comprar armas, logística e contratação de mais policiais, por outro lado, o exército continua apoiando não apenas financeiramente, como que existem campanhas midiáticas para justificar possivelmente uma decisão do regime que inclui o legislativo para aprovar um tipo de recrutamento obrigatório.
Por outro lado, a presença militar estrangeira aumentou imediatamente após o Golpe de Estado, temos que lembrar que a base militar gringa foi usada para tirar do país o ex-presidente Zelaya, também que dias seguidos ao Golpe começaram a construção imediata da base estrangeira em Karataska, também abriram outras em Guanaja, parte insular do departamento de Ilhas da Bahia, mais recente em Mocorón, outra nas proximidades de Porto Lempira e a ocupação total do Rio Patuca e Plátano nas biosferas Tawahaka e Miskita, sob pretexto do narcotráfico, se ameaça reabrir bases em território Lenka que funcionaram nos anos 80 e se impõe nessa lógica o serviço militar, particularmente, a jovens indígenas Lenkas que vivem em condições de miséria e sem oportunidades dignas.
Nestas regiões se encontram grandes riquezas humanas, naturais, culturais, científicas, entre outras, por exemplo. As biosferas sobre o Rio Patuca, Rio Plátano, tem petróleo, riquezas hídricas já que encontramos água doce, salgada, lagoas, pântanos, zonas úmidas, igualmente diversa é sua flora e fauna, existe muito conhecimento ancestral, adjacente com várias fronteiras tanto marítimas como terrestres. Temos que mencionar que na zona da Moskitia próxima da base de Karataska se concederam seis concessões petroleiras e são gringas também.
Além disso, a militarização não apenas está se sustentando com forças formais uniformizadas, também o golpismo se encarregou de aumentar forças paramilitares assessoradas pela mesma política dos falcões do Pentágono e a "política de segurança democrática" e o paramilitarismo colombiano, que fazem de Honduras um pátio perfeito para a indústria baixa - que dá substanciosos ganhos - de tráfico e de forças especializadas em torturas, sequestros e repressão. Junto com isso se criou mais estruturas para a espionagem e a suposta "inteligência" que permite a operação não apenas de corpos dedicados a tirar informação de membros e organizações do movimento social e da Resistência, como também de esquadrões da morte, muito ativos logo do Golpe de Estado.
Outro fenômeno é o impressionante crescimento do militarismo através das famosas "agências privadas de segurança", que são verdadeiros exércitos, sem controle, mais que o de seus donos oligarcas, militares, ex-membros da CIA [Agência Central de Inteligência].
Mas a militarização cruza muito mais que o mencionado anteriormente, é que se impulsiona e se fortalece a ideia da militarização através dos meios massivos oligarcas, através da cibernética, com os jogos e brinquedos aos meninos e meninas, nos mesmos sistemas educativos existentes, nas igrejas, se impõe a imagem de militares e policiais como os que ostentam a máxima autoridade e salvação, quando na realidade são uma ameaça para a sociedade mesma, são usados para reprimir, assassinar, molestar, etc.
ADITAL - É visível que a luta do povo hondurenho tem apoio de vários países na América Latina. Como vocês avaliam a retomada dos movimentos sociais no princípio do Golpe e agora quase dois anos depois?
BCF - Eu diria que o apoio de vários países como governos-estados foi importante nos primeiros dias do Golpe, mas este já não é igual.
Nos movimentos sociais - dos que apontávamos no tempo imediato ao Golpe, como os que sempre nos acompanhara, - tem uma certa baixa no ânimo - creio que a falta de informação, o que Honduras novamente esteja fora da agenda de grandes meios contribui para que se pense que aqui se retornou à "normalidade", e isso não é certo, continuamos no Golpe de Estado, a situação política do país não mudou, o povo hondurenho e a Resistência continuam suportando os impactos, mas tem algo que, apesar disto, surgiu com crescente consistência, tem uma solidariedade militante que desde este dia fatídico soube da existência deste povo e que somos um povo digno e que seguiremos lutando apesar da adversidade. Insistimos o movimento social não deve depender do vai-e-vem dos governos, por muito progressista que sejam ou pareçam, e acredito que às vezes se apegar à dependência dos governos, mesmo que sejam aliados, pode impactar no entusiasmo e decisões dos movimentos sociais, decisões como respaldar com clareza política e conjuntural, de vários modos, este processo da Resistência.
Esperamos que essa consistência continue crescendo, se fortalecendo e expandindo entre todos os povos, porque devemos construir capacidade de responder, e ir mais como movimentos sociais, ante as estratégias hemisféricas do colonialismo capitalista, patriarcal e racista, e dar respostas nessas mesmas dimensões continentais e globais.
ADITAL - Como é a situação hoje? Continuam os abusos e violações aos direitos humanos e políticos mesmo com denúncias e informes internacionais?
BCF - Continuam os abusos e as sistemáticas violações aos direitos humanos, nem com discursos de reconciliação, nem com assinaturas de acordos de Cartagena, nem com a integração de Honduras à OEA, se pôs fim a esta situação dramática e condenável, ontem, precisamente, se assassinou a outro companheiro campesino de Baixo Aguán, persiste a impunidade absoluta nos casos de mais de 40 campesinos desta região torturados e assassinados; as transnacionais operam igual, com ilimitada impunidade a tal grau que nem lhes importa se por decreto obtém concessões quando já estão agredindo os direitos individuais e coletivos, territoriais e culturais dos povos indígenas, Garífunas e Negros, que são, paralelamente, militarizados, incluindo transnacionais como Iberdrola tem em suas linhas capatazes sindicalizados como sequestradores e homens que tentaram violar companheiras jovens que lutam contra os megaprojetos eólicos das grandes companhias; continua a impunidade em mais de 30 assassinatos da comunidade LGBTI; aumentou o racismo, o feminicídio, a criminalização aos movimentos sociais que fazemos lutas históricas, continuam nos perseguindo, vigiando, penetrando em nossas casas buscando informação, ameaçam a nossos filhos e filhas, igual nossas rádios comunitárias indígenas e alternativas, em geral, existe medo de perder a vida ou ser objeto de sequestros e torturas.
Neste contexto nem sequer os exilados e exiladas puderam regressar, a exceção de, talvez, 10%, a grande maioria não o fez porque não sente que suas vidas e de suas famílias estejam garantidas; e ainda os que se atreveram a fazê-lo, no marco dos acordos de Cartagena, foram novamente ameaçados e expulsos como é o caso do Padre Andrés Tamayo, a quem o General golpista Venancio Cervantes, que é parte do aparato golpista que permanece intacto e que é diretor de Migração em nível nacional, o ameaçou, inclusive, publicamente. O Padre Andrés Tamayo se viu obrigado a sair aos 5 dias logo de que retornasse o ex-presidente Zelaya. Também está o caso do Advogado Enrique Flores Lanza, ex-ministro de Mel Zelaya, que também retornou no último dia 28 de maio, ao advogado se iniciou um "linchamento" jurídico por parte dos setores e meios de desinformação golpista, campanhas de desprestígio, ameaças, lhe foi dada prisão domiciliar e se exigiu uma fiança exorbitante de 27 milhões de lempiras (mais de um milhão e quatrocentos mil dólares), estas diligências foram expedidas por parte do regime e prevemos que é apenas o início de um forte ataque contra membros da Resistência e ex-funcionários de Mel Zelaya e possivelmente contra ele mesmo, quem, em realidade, não tem assegurado o respeito a sua vida.
Aqui não existe respeito aos direitos humanos, ao contrário, existe um retrocesso total nesta matéria.
ADITAL - Quando falamos em militarização, temos em conta a ingerência dos Estados Unidos. Bases militares, ocupações ilegais, investimentos em equipes de guerra... Qual a opinião da organização do encontro diante deste tema específico?
BCF - É parte de todo um esforço e luta histórica, no que já a COPINH [Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras] deu contribuições na articulação hemisférica, como, por exemplo, em outubro de 2008, que desenvolvemos o II Encontro Hemisférico contra a Militarização, e nesta ocasião se centra novamente, em alçar as vozes dos povos e organizações de exigir que desapareçam as ocupações e bases militares estrangeiras, as operações (inclusive umas chamadas cívico-militares) como a IV Frota que parece que nos esqueceram e que continua se executando, os exercícios Panamaz, Novos Horizontes, o Plano Mérida, planos e leis antiterroristas, a ASPAN [Aliança para a Segurança e Prosperidade da América do Norte], todos estes e outros são revelados, se analisará todo o papel que joga a militarização e ocupação em Golpes de Estado como o executado aqui em Honduras, e ademais se compartilharão também as experiências de luta e sempre concluímos com uma ação que expresse o rechaço a essa política, como faremos neste encontro também com a segunda caravana até a base militar estrangeira de Palmerola em Comayagua (centro do país) caravana que nomeamos Visitação Padilha, em reconhecimento de uma das grandes lutadoras hondurenhas contra a ocupação gringa, isto será na terça-feira, 28 de junho, a dois anos do Golpe. Outro ponto é a visão de acabar com todas as formas da militarização, no sentido amplo, ou seja, não apenas as instalações físicas de uma base, como contribuir a por fim a todas as formas e mecanismos de controle, opressão, intolerância, repressão e dominação. Pois a ideia, é seguir com estes esforços com visões integradoras, múltiplas e diversas, onde construímos coletivamente organização e articulação, que melhore a situação dispersa de nossos processos, não apenas em Honduras.
ADITAL - Que análise vocês fazem com o retorno de Zelaya e o retorno de Honduras à OEA?
BCF - O retorno de Mel Zelaya é importante, é justo e todas e todos nos sentimos alegres disso, e ele pode ser um dos referentes mobilizadores e poderia dar maior dinamismo para a Resistência, com tal que não fique unicamente nos cantos para a mesma, para a arena eleitoreira e continue sendo um processo político-social que deve ser realmente amplo e fresco, com a necessidade de se fortalecer continuamente em todos os âmbitos. Mas não podemos aceitar que a OEA, independentemente do assinado no Acordo de Cartágena, não tenha considerado a violação de direitos humanos, a repressão, a militarização, a completa ausência de um estado de direito e de institucionalidade útil ao povo. Um regime onde o golpismo está intacto e impune com todos os seus tentáculos. Onde os poderes fáticos continuam acumulando mais poder e fazendo saques, que foi também a razão de perpetrar o Golpe de Estado. Por isso, sustentamos que a OEA, que tanto fala de direitos humanos e de democracia, não tem razão de existir, com esta decisão acaba de se enterrar, e de confirmar o decrépito e hipócrita de seus discursos, e que é tão frágil que apenas pode apontar aonde os gringos lhe indiquem, por mais discurso, nunca tiveram realmente, a vontade política de reverter o Golpe em Honduras, não reconhecem o processo da Resistência, nem suas demandas levantadas desde a base. A OEA é uma ameaça ao processo constituinte refundacional, originário e democrático que deseja o povo hondurenho. A OEA é útil para legitimar golpes de estado como o de Honduras, para abrir as portas a que se executem novos golpes de estado na América Latina e Caribe, não apenas não terá autoridade nem para condená-los, como que continuasse sendo 'motivo de riso' como diz uma canção de Carlos Puebla.
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