Sue Iamamoto, via Caros Amigos
“Ela preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe operária desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um e outro se alimentam da imagem de antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados.
Assim critica Walter Benjamin a ânsia por progresso da social democracia, em sua tese XII “Sobre o Conceito de História”. Ao priorizar a imagem destes antepassados, Benjamin defende que os socialistas devem se guiar por uma ideia de justiça e não por uma ideia de progresso. Estes são dois ideais que marcaram a história do socialismo nos últimos dois séculos e que voltam a se enfrentar de forma contundente no atual panorama político da Bolívia.
Entre 2000 e 2005, este país viveu uma convulsão de movimentos sociais que questionaram profundamente a ordem neoliberal vigente. A Guerra da Água em Cochabamba (2000) combateu a privatização de um recurso vital e demandou que tal recurso fosse administrado comunitariamente. Na Guerra do Gás (2003), setores populares de todo o país demandaram a renúncia do presidente Gonzalo Sanchez de Lozada e anunciaram a agenda de outubro, que pedia nacionalização e industrialização dos hidrocarbonetos, reforma agrária e assembleia constituinte para refundar o país com base em sua descolonização (ou seja, que a Bolívia fosse culturalmente e institucionalmente representativa da maioria indígena que compunha a sua população). Estes temas marcaram o conteúdo inicial do processo de câmbio impulsionado pelo governo de Evo Morales a partir da sua eleição em 2005.
Noções de progresso e de justiça caminharam de mãos dadas neste movimento antineoliberal, unificado graças à ideia de uma elite política que seria ao mesmo tempo antidesenvolvimentista e senhorial-oligárquica, uma elite “antipátria e crioula”. Quando o bloco popular anterior passa a assumir as tarefas estatais, contudo, este inimigo comum, que antes era materializado no Estado, perde a sua força. A ideia de progresso e a ideia de justiça passam a se enfrentar de forma crescente.
O recente conflito envolvendo o Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis) é um dos exemplos mais extremos desta pugna. Resumidamente, o governo de Evo Morales está construindo uma estrada que corta o Tipnis, alegando sua necessidade para o desenvolvimento das comunidades camponesas, para as quais a construção de caminhos sempre foi uma demanda constante. Apoiam a medida as principais organizações do campesinato boliviano, que representam a base social mais fiel do governo. Contudo, apoiados pelas principais representações indígenas do país, os povos que habitam o Tipnis se pronunciaram contra a construção da estrada, que causaria prejuízos à preservação ambiental da reserva e à manutenção de seus usos e costumes, priorizando os interesses sub-imperialistas brasileiros (a obra é financiada pelo BNDES, é realizada pela construtora brasileira OAS, e faz parte de um corredor bioceânico do projeto IIRSA) e de empresas interessadas na exploração petroleira da área (como a Repsol). O conflito atingiu níveis inimagináveis no último mês, quando a polícia impediu violentamente o avanço da marcha em repúdio à construção da estrada, que ia em direção à La Paz.
Não creio que seja fácil a escolha entre uma demanda por progresso (em um dos países mais pobres do continente, que carece de um sem fim de serviços públicos e que depende da exploração dos recursos naturais para financiar políticas sociais básicas) e uma demanda por justiça (com povos indígenas sendo historicamente excluídos das decisões políticas que os afetam, sofrendo com violências sociais, econômicas e políticas sistemáticas). Muitos defenderão que é possível pensar um desenvolvimento baseado nas lógicas indígenas de “viver bem” e “respeito à Mãe Terra”, este inclusive tem sido um dos discursos oficiais do próprio governo de Evo Morales. Mas os fatos políticos apontam que esta síntese, se é que existe, parece muito difícil de ser encontrada, principalmente ao se manter intocada a estrutura do Estado moderno capitalista. Se o socialismo no século 21 quer existir, ele deve aprender com os erros que viveu durante o século 20: não é possível compreender a irracionalidade do mundo capitalista se nos esquecemos que este produz escravos.
Sue Iamamoto é cientista política e autora da dissertação de mestrado “O nacionalismo boliviano em tempos de plurinacionalidade: Revoltas antineoliberais e constituinte (2000-2009)”, do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo.
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