O Brasil se tornou um imenso canteiro de obras.
O problema é que há gente morando nos locais onde se quer construir.
Então, para garantir que ninguém interrompa este país (que caminha impávido para cumprir seu destino glorioso), remove-se, expulsa-se, retira-se. Degreda-se. Para onde? Pouco importa, contanto que não atrapalhe o progresso.
E isso se aplica à construção de casas, escritórios, estradas, hidrelétricas, estádios de futebol.
Um dia um fazendeiro português com terras no Mato Grosso disse a Pedro Casaldáliga, símbolo da luta pelos direitos do campo no Brasil, para justificar o injustificável: “Dom Pedro, o senhor é europeu, o senhor sabe. As calçadas de Roma foram feitas por escravos. O progresso tem seu preço”.
O uso da porrada como instrumento de cumprimento de ordem legal varia caso a caso. Mas a violência está presente em todos eles, com bala de borracha ou não. Afinal de contas, existe maior atentado contra a dignidade humana que a remoção forçada de pessoas, no campo ou na cidade, que não têm para onde ir?
Adoro quando o governo diz “estávamos apenas cumprindo ordens”, mesmo quando todos sabemos que não havia condições para que a execução dessas ordens fosse feita de forma a respeitar a dignidade da população. Há sempre a possibilidade de dizer “não”, a Constituição garante isso ao poder público, para garantir um cumprimento pacífico. Em Nuremberg, o “cumprir ordens” foi amplamente usado. Lá, não colou. Aqui, cai como uma luva.
Cada um tem sua parcela de responsabilidade, apesar do Fla-Flu político instalado na internet queira demonstrar que não.
Falar sobre a política higienista de São Paulo e de seus governantes, estaduais ou municipais, é quase chover no molhado. Afinal de contas, as empreiteiras e os especuladores imobiliários estão lá, doando recursos de campanha, emprestando parentes para cargos públicos, influenciando o cumprimento e o não cumprimento de regras (o plano diretor de São Paulo que o diga).
Além do mais, a sanha punitiva do Estado-locomotiva (sic) da nação é grosseira, tendo – na maioria das vezes – como alvo a massa de sem-teto, sem-terra, dependentes químicos, pobres, enfim, os rotos que ousam ficar no meio do caminho contra alguma coisa. São Paulo é a prova viva do que ocorre com uma sociedade quando ela não digere e entende o seu passado. Ainda usamos métodos dos verde-oliva da ditadura, pois não refletimos como povo sobre eles. Mudam-se os rótulos, ficam as garrafas. Qual a diferença de descer porrada em indígenas no Amazonas e Roraima para construir uma estrada e lançar balas de borracha em uma comunidade pobre em São José dos Campos para, quem sabe, erguer um empreendimento?
Em São Paulo, Maria Aparecida foi mandada para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador. Perdeu um olho enquanto estava presa. Sueli também foi condenada pelo roubo de dois pacotes de bolacha e um queijo minas. São dois, mas poderia ter dado muitos outros exemplos que ocorreram no Estado mais rico da nação. Aqui, a Justiça tem cumprido a letra da lei em casos de reintegração de posse contra sem-terra e sem-teto, mas é morosa na análise de casos de desapropriação de terras griladas que deveriam retornar à coletividade (ah, é rápida também para adiantar parcelas de auxílio-moradia a alguns magistrados que são mais iguais que os outros). Isso sem contar que, para executar as ordens, os administradores são implacáveis com pequenos e delicados com os grandes.
Mas dá paúra ver setores do governo federal, como a Secretaria Geral da Presidência, ultrajados com a tragédia humana que está ocorrendo em São José dos Campos ao passo que a União está passando o trator em cima de ribeirinhos, camponeses e indígenas para a construção de usinas hidrelétricas, como a de Belo Monte, no Pará. Em nome do progresso – o mesmo do fazendeiro interlocutor de Casaldáliga citado acima. Como já disse, violência estatal não é só dar porrada com cacetete. Ela pode vir através de financiamento também. É mais limpo.
Ultraje, passageiro, diga-se de passagem. Pois Gilberto Carvalho, o ministro que teve um secretário atingido por bala de borracha na desocupação do Pinheirinho, primeiro reclamou de como ela foi ocorreu. Depois, amenizou. “Não vou dizer que é imperdoável, mas é grave”.
E, antes que eu me esqueça, empreiteiras também são grandes doadoras de campanhas federais.
O governo brasileiro inundou o país com bilhões em recursos para a construção, com o objetivo de modernizar a infra-estrutura e erguer moradias, girando a economia. Só que “esqueceu” de uma coisa: com o mercado imobiliário aquecido, a busca por áreas urbanas para a incorporação levaria à expulsão de comunidades que disputam a posse de terrenos. Se a Justiça considerasse sempre a função social da propriedade para tomar suas decisões, como está previsto na Constituição Federal, a história seria diferente e essas comunidades teriam direitos preservados. Mas se o Coelhinho existisse, talvez eu tivesse ganho o ovo de chocolate que tanto queria na última Páscoa. Ou se Papai Noel fosse de carne e osso, obras para a Copa não desalojariam ninguém de forma questionável.
O Planalto não se planejou para esses impactos da transformação do país em canteiro de obras. Para falar a verdade, não planejou muita coisa nessa área.
A questão trabalhista na construção civil está uma calamidade – os protestos na usina hidrelétrica de Jirau, que levaram a um quebra-quebra no ano passado, são a cereja do bolo. Pipocam protestos de trabalhadores nas obras de estádios de futebol para a Copa do Mundo, como em Recife e no Rio de Janeiro, e casos de trabalho escravo (artigo 149 do Código Penal) em obras de moradia. Até em empreendimentos pertencentes ao “Minha Casa, Minha Vida” o Ministério do Trabalho e Emprego já libertou gente, como noticiei aqui.
E sabem o melhor de tudo isso? O grosso da população brasileira não se importa. Assistem ao Estado tocar o diabo em uma comunidade. Acham um absurdo exageros, como todo ser cordial brasileiro, mas também não se importam em saber como o seu apartamento, energia elétrica, estrada ou estádio foram feitos. Querem ser abençoados e permanecer na ignorância.
Lembro-me do ensaio “O Fausto de Goethe: A Tragédia do Desenvolvimento”, de Marshall Berman. Trata da ambigüidade destes tempos de constante transição, nos quais o homem encaixa-se no contexto da modernidade da forma como consegue e da forma em que as circunstâncias permitem. Um tempo de paradoxos. Fausto é um personagem que tem altos e baixos: encanta e fascina, surpreende e decepciona. Não é possível traçar um caráter para ele, pois ele não o possui. Assim como todo o sistema, é mutável – uma metáfora do desenvolvimento capitalista.
Fausto vendera sua alma em troca de experimentar as sensações do mundo. Mas o diabo não é o Lúcifer da cristandade, não representa o mal em si, mas sim o espírito empreendedor capitalista e burguês. A mentalidade que fomenta Fausto (“destruir para criar”) é a realidade em constante movimento (Mefistófeles perguntava a ele se Deus não havia destruído as trevas que reinavam no universo para poder criar o mundo).
Essa destrutividade criativa pode ser encontrada no caso de Filemo e Baúcia, um casal de idosos. Ambos eram um empecilho para os planos do empreendedor Fausto e precisavam ser removidos. Quando Mefistófeles queima a casa deles, os assassinando, não quer Goethe provar a sua maldade, mas expor exatamente o contrário: joga-se a negatividade fora criando o princípio fictício que o mal (o casal idoso) pode ser estirpado da sociedade. Caem os padrões morais. O desenvolvimento da modernidade não possui padrões éticos, além da ética que cria para si mesmo.
Para parte da população, o Pinheirinho era um mal a ser extirpado em nome do progresso e do futuro.
Mundo triste. Demais.
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