Gilson Caroni Filho
Ao negar as acusações da
presidente Cristina Kirchner de que esteja militarizando o Atlântico Sul e
rejeitar qualquer solução negociada sobre a soberania das ilhas Malvinas, o
governo do premiê David Cameron comprou uma briga complicadíssima, impossível de
ser vencida: com seu próprio passado que combinou, com perfeição, a
intransigência, o garrote e a libra.
A diplomacia britânica
ainda conserva desconcertantes sutilezas herdadas de seu passado imperial.
Sofismas e negação de evidências são a marca registrada quando se trata de
ocultar velhos métodos. No transcurso de dois séculos, os ingleses usaram e
abusaram da ingerência política, econômica, diplomática e militar.
Possivelmente, mesmo depois do declínio, ainda conservem o modus
operandi.
Para alcançar seus
objetivos, os sucessivos governos de Sua Majestade recorreram a invasões,
guerras, à desestabilização interna e ao acirramento de conflitos regionais para
assegurar sua supremacia em regiões colonizadas. Também, em diferentes épocas,
contaram com diversos aliados: presidentes, ministros, chanceleres, generais,
banqueiros e mercenários de toda ordem.
Voltemos à guerra de
1982. Quatro anos antes, em 1978, Chile e Argentina estiveram a ponto de entrar
em guerra pelo litígio do Canal de Beagle. Ao serem desatadas as hostilidades
pelas Malvinas, o governo de Santiago recusou a aliar-se a seus vizinhos como
fez o resto da América Latina, opôs-se à convocação do Tiar (Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca) e absteve-se em todas as votações que
condenaram a agressão britânica e o apoio norte-americano. A posição chilena
favorecia o Reino Unido e, contudo, os ingleses colocaram o parceiro em
evidência, expondo-o a consequências desagradáveis.
Foi a própria mídia
estatal inglesa a encarregada de revelar o papel determinante do Chile para a
inteligência britânica que teria instalado naquele país um sistema de espionagem
eletrônica das bases argentinas em Ushuaia, Rio Grande e Rio
Gallego.
Não, não houve qualquer
trapalhada diplomática. Essas declarações de “gratidão” não obedeceram aos bons
modos britânicos, mas sim a sua prática constante de dividir para reinar,
fomentando a ressurreição de antigos eixos geopolíticos, pelos quais cada país
se considera inimigo de seu vizinho, em proveito do inimigo de todos eles que
costuma ser também o abastecedor de armas. Um cenário felizmente superado na
região.
Quando negam as intenções
militares, os ingleses parecem ter esquecido que, em 1985, a Argentina protestou
energicamente perante a OEA contra uma base aérea no arquipélago. O então
ministro das Relações Exteriores, Dante Caputto, garantiu que a conversão das
Malvinas numa poderosa base militar constituía “uma grave ameaça à segurança de
nossa nação, à paz e à tranquilidade de nosso continente e, por conseguinte, à
paz e à tranquilidade no mundo”.
O comunicado da
Secretaria de Exterior britânica, afirmando que cabe aos kelpers (como
são chamados os habitantes das ilhas) decidirem seu próprio destino (“eles
escolheram a cidadania britânica, têm liberdade para determinar seu futuro e não
haverá negociações com a Argentina a não ser que eles assim desejem”), prima
pelo sofisma e pela jactância imperial.
Como recorda o
historiador Dino Freitas “no século 17, Oliver Cromwell esmagou a rebelião
irlandesa usando tropas escocesas, e colonizou o norte da Irlanda com essas
forças, que se ambientaram à região do Ulster, dando origem às raízes do atual
conflito anglo-irlandês. Os chamados protestantes irlandeses, de irlandeses não
tem quase nada. Com o estabelecimento de uma população de colonos britânicos no
Atlântico Sul, os ingleses aplicam a mesma estratégia. Introduzem uma população
fanática e cegamente leal para defender seus interesses, já que nunca desejarão
ser argentinos”.
É previsível saber os
futuros desejos dos kelpers. Cameron, como um pugilista desonesto,
procura meter o dedo no olho inchado de seu rival. Se no século retrasado, isso
serviu para dominar os mares e o comércio – explorar os recursos naturais e
amarrar os povos periféricos na roda dos juros compostos de seus créditos que
nunca terminavam de se pagar – hoje os ingleses buscam, além do petróleo,
conservar os remanescentes daquele esplendor, alimentando sua moderna indústria
bélica e agregando valor a vários setores de sua combalida economia. À América
Latina não cabe outra posição que não seja de irrestrito apoio às reivindicações
do governo de Cristina Kirchner
Gilson Caroni
Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso
(Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal
do Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário