Por Laura Carlsen, no sítio da Adital:
Desde que o México aprovou o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Tlcan), milhões de mexicanos uniram-se às filas dos famintos. Enquanto a violência e o sangue da guerra contra as drogas se apoderam das manchetes dos jornais, muitos mexicanos, sobretudo mulheres e crianças, enfrentam a silenciosa e violenta sorte da fome.
Os últimos relatórios mostram que o número de pessoas que vivem em "pobreza alimentar” (a incapacidade para adquirir a cesta básica de alimentos) aumentou de 18 milhões (em 2008) para 20 milhões (finais de 2010). Ao redor de um quinto das crianças mexicanas sofrem de desnutrição. Em 18 de outubro de 2011, o Instituto Nacional de Nutrição estimava em 728.909 o número de crianças menores de cinco anos desnutridos. As estatísticas do governo informam que 25% da população não têm acesso aos alimentos básicos (1). Desde a crise alimentar de 2008, houve um aumento de 3% da população sem acesso adequado aos alimentos. Os recém-nascidos apresentam os maiores índices de desnutrição, o que indica que a tragédia começa com a falta de saúde materna.
A dramática mudança nos hábitos alimentícios do México desde que o Tlcan foi aprovado não se reflete somente nos milhões de pessoas que dormem com fome. No lado oposto da escala, em apenas uma década e meia, o México converteu-se no segundo país do mundo em obesidade mórbida. O primeiro é Estados Unidos. Atualmente, a obesidade infantil, sobrepeso e diabetes constituem-se os principais problemas de saúde, juntamente com o problema tradicional da fome.
Não é que os ricos tornaram-se muito gordos e os pobres muito magros. A gordura já não representa a abundância. São os pobres os que bebem Coca-Cola barata quando não têm acesso à água potável ou que dão aos seus filhos um saco de batatas fritas quando os alimentos frescos da zona já não estão disponíveis.
Com outra crise alimentar, devido ao aumento dos preços internacionais, o México poderia enfrentar distúrbios pelos alimentos, bem como a propagação da fome e suas consequências durante esse ano de 2012. Caso os distúrbios tornem-se violentos ou aconteça uma convulsão social mais ampla, como a que aconteceu nos países árabes, não é provável que os meios de comunicação deem a devida atenção a essa situação.
TLC: um modelo de (in)segurança alimentar
Alguma coisa caminha terrivelmente mal. A nação que afirmava entrar na prosperidade com a assinatura do TLC converteu-se em um exemplo internacional de graves problemas estruturais na cadeia alimentar, desde a forma pela qual produz seus alimentos até o que e quanto (ou quão pouco) consome.
A desnutrição no México tem suas raízes na assinatura do TLC e em outros programas neoliberais que têm obrigado a nação a distanciar-se da produção de alimentos básicos para seu próprio modelo de "segurança alimentar”. (...).
A ideia da segurança alimentar baseada no acesso ao mercado provém diretamente do principal argumento sobre "as vantagens comparativas” do Tlcan. Em poucas palavras, a eficiência econômica exige que cada país deve dedicar sua capacidade produtiva ao que sabe fazer melhor e liberalizar o comércio transfronteiriço. Sob a teoria da vantagem comparativa, a maior parte do México foi considerada não apta para produzir seu alimento básico, o milho, já que seus rendimentos estiveram muito por baixo da média de seu vizinho do norte e sócio comercial (EUA). Portanto, o México deve recorrer às importações de milho e dedicar suas terras aos cultivos nos quais, supostamente, teria uma vantagem comparativa, como as frutas de temporada e tropicais e hortaliças. Soa simples. Mas, com esse raciocínio, três milhões de produtores "ineficientes” de milho ineficiente devem ser eliminados (e também suas famílias) e devem passar a atuar na fabricação ou no armazenamento, onde sua mão de obra barata constitui uma vantagem comparativa. Nessa equação, as consequências culturais e humanas para esses camponeses e comunidades inteiras de obsoletos indígenas não preocupam.
Dezessete anos após a assinatura do Tlcan e com o desmantelamento dos apoio do governo, mais de 2 milhões de agricultores foram obrigados a abandonar suas terras, vendendo-as a baixos preços. Não encontraram postos de trabalho na indústria. Em troca, a maior parte deles passou a integrar uma massa em êxodo -migrantes mexicanos rumo aos Estados Unidos-, estimada em meio milhão de pessoas somente no primeiro ano. Nos primeiros anos do Tlcan, as importações de milho triplicaram e o preço ao produtor caiu pela metade.
Na maioria dos casos, a conversão para outros cultivos levou anos. Os preços foram voláteis e as colheitas pouco confiáveis. Em muitas ocasiões, não eram cultivos factíveis para as pequenas parcelas, rochosas, que viam no milho uma garantia para sua dieta de subsistência. O resultado é que a produção agrícola total cresceu somente 2%.
As áreas que se adaptaram com êxito à agricultura industrial e aos cultivos de agroexportação se caracterizam por uma flagrante violação dos direitos laborais dos trabalhadores agrícolas migrantes, contaminação generalizada, águas residuais e a extrema concentração de terras e recursos.
Para os famintos, isso significa que os preços fixados no mercado internacional determinam quem come e quem morre de fome. Os consumidores mexicanos agora pagam mais pelas tortilhas de milho e pelos alimentos em geral. Os aumentos de preços no mercado internacional empurram o alimento básico para fora do alcance dos milhões de pobres no país.
A dependência de alimentos
No pós Tlcan, 42% da comida que se consome no México provém do exterior. Antes do Tlcan, o país gastou 1.800 bilhão de dólares em importações de alimentos. Agora gasta 24 bilhões. Em entrevista, o pesquisador Ernesto Ladrón de Guevara assinalou que em alguns alimentos básicos a dependência das importações é dramática: 80% em arroz; 95% em soja; 33% em feijão e 56% em trigo. É o primeiro país do mundo em importação de leite em pó. O México, antes próspero no setor lácteo, agora, em virtude do Tlcan, deve importar leite em pó de uma multinacional vinculada à crise da desnutrição infantil.
O México importa 33% do que consome, passando de 250 mil toneladas, antes do Tlcan, para as 13 milhões atuais. O Departamento de Agricultura dos Estados Unidos estima que se as tendências atuais continuam, o México vai adquirir 80% de seus alimentos de outros países (principalmente dos EUA). A FAO, organismo da ONU para a agricultura e alimentação, considera que um país é dependente em questão alimentar quando as importações superam 25% do total das exportações.
Cara, eu ganho; coroa, tu perdes
A tomada do poder corporativo do sistema alimentar do México tem levado à catástrofe alimentar e da saúde. As empresas transnacionais de alimentos não somente importam livremente nos mercados de comida mexicana; agora são produtores, exportadores e importadores; tudo em um só operando dentro do país.
A partir do TLC, as empresas devoraram os recursos humanos e naturais em uma escala quase incrível. A produção pecuária passou de pequenas granjas que produziam para os mercados locais para a Tyson Smithfield e para a Pilgrims Pride. O uso massivo e a contaminação da água e da terra conduziram a desastres ambientais e sanitários em todo o país. Milhões de empregos perderam-se devido à concentração e aos métodos de agricultura industrializada.
Vejamos o exemplo de Com Products International (CPI). A transnacional apresentou uma reclamação contra o governo mexicano em 2003, acobertando-se no Tlcan, alegando uma perda para seu negócio devido a um imposto sobre o xarope de milho de alta frutose nas bebidas. A razão do México para impor o imposto era para salvar uma indústria de cana de açúcar que proporciona empregos para milhares de cidadãos e desempenhou um papel econômico crucial em muitas regiões. Curiosamente, o governo viu frustrada sua tentativa de entrar, também em virtude do TLC, ao muito protegido mercado estadunidense do açúcar.
Um tribunal do Tlcan emitiu um parecer sobre o caso em 2008. O México teve que pagar 5.8 milhões de dólares a uma companhia que tem vendas netas de 3.7 bilhões de dólares anuais. A multa paga pelo governo mexicano poderia ter coberto um ano de cesta básica de alimentos para mais de 50 mil famílias pobres. A CPI é uma empresa subsidiária da Corn Products Arancia, uma das transnacionais de alimentos mais poderosas que operam no país, junto com Maseca / Archers Daniel Midland e Cargil. São as grandes empresas de agronegócios que desempenharam um papel chave na crise da tortilha de milho, em 2007 devido ao monopólio das colheitas e à elevação do preço internacional. Essa crise provocou o protesto de milhares de mexicanos pobres ante o aumento de 50% no preço da tortilha de milho.
O Tlcan e outros acordos de livre comércio outorgam às corporações o poder de decidir o que comemos, o que compramos, quem tem trabalho e quem não tem e se um povo dedicado à produção local de alimentos sobreviverá ou presenciará o final de seus tradicionais meios de subsistência durante gerações.
Alimentar os famintos; corrigir o sistema
As organizações mexicanas começaram a reunir-se após anos de divisões para responder à crise alimentar e consertar o sistema, que está em mal estado. Conseguiram uma reforma constitucional para incluir o direito à alimentação. Para que esse direito se torne realidade, falta travar a batalha para a adaptar o orçamento rural.
Organizações de pequenos agricultores uniram-se a organizações de agricultores familiares nos Estados Unidos e no Canadá para pedir a renegociação do Tlcan e eliminar dele os alimentos básicos e a produção agrícola. Porém, a administração Obama, com seus compromissos adquiridos, deixa muito pouco espaço para mudanças. No entanto, não cederão em seus esforços para corrigir o sistema alimentar antes de que a crise se agrave ainda mais. As organizações dos EUA estão vendo a oportunidade de unir suas demandas as do movimento Ocupar Wall Street em todo o país.
O controle corporativo do sistema alimentar, encerrado no Tlcan, não somente atinge as pessoas no México. Ninguém espera que a situação melhore por si mesma. Ao aprofundar-se a crise, os movimentos cidadãos devem buscar pontos de união transfronteiriça para proteger sua saúde, seus meios de subsistência e seus direitos. No futuro, o que comemos, como comemos e se comemos dependerá de seus esforços.
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