quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Luiza Erundina: “Prefiro pagar o custo político a fazer concessões de princípios”

Revista Brasil de Fato: Em entrevista, a deputada federal relembra o caso do cemitério de Perus e critica o acordo do PT com Paulo Maluf.
Patrícia Benvenuti, da Redação.
Em 4 de setembro de 1990, revelou-se um dos crimes mais chocantes da história da ditadura civil-militar brasileira: a vala clandestina de Perus, localizada no cemitério Dom Bosco, na periferia da cidade de São Paulo.
Na vala foram encontradas 1049 ossadas de indigentes, vítimas de esquadrões da morte e militantes políticos contrários ao regime militar.
A vala comum, porém, não foi o único crime associado ao cemitério de Perus, criado em 1971 durante a gestão de Paulo Maluf, hoje deputado federal (PP-SP). Foram constatadas mudanças no local, como reordenação e supressão de quadras e outras reformas, feitas para dificultar a localização dos corpos.
A abertura da vala teve o apoio da então prefeita Luiza Erundina, que atendeu ao apelo de familiares de vítimas e ainda criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o crime.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a deputada federal (PSB-SP) relembra o episódio e comenta as razões que a levaram a desistir da candidatura a vice-prefeita na chapa encabeçada por Fernando Haddad para as eleições deste ano. Dentre elas, o acordo de Paulo Maluf com o Partido dos Trabalhadores “Não sinto condição e nem vontade alguma de ficar junto desse cara em qualquer processo, e não seria agora”, diz.
Leia a entrevista:
Brasil de Fato - A vala comum do cemitério de Perus foi aberta na sua gestão. Qual a importância da memória do caso de Perus para o cenário político de São Paulo?
Luiza Erundina - Isso [criação da vala] envolveu as forças mais reacionárias e que participaram ativamente da repressão política na época da ditadura, como era o caso do [Paulo] Maluf, que era prefeito da cidade. O cemitério de Perus foi construído por ele, onde eram desovados os corpos dos resistentes e opositores do regime militar. Nós encontramos aquela vala clandestina e localizamos lá 1049 ossadas em sacos plásticos sem nenhuma identificação. Conseguimos um convênio do governo do Estado, que possibilitou a análise científica daqueles restos mortais na Unicamp. Nós encontramos oito ossadas naquele cemitério e em outros cemitérios municipais da época do Maluf. No momento em se está resgatando a memória do país, em que a gente já conseguiu revelar fatos muito graves da repressão política na ditadura, é evidente que isso tem tudo a ver.
Esse fato influenciou na sua decisão de abandonar a chapa com o Fernando Haddad?
Não foi só isso. É a prática, a história, a trajetória do Maluf, não só nessa esfera ligada à repressão política mas à corrupção, à imoralidade, as obras públicas superfaturadas, ao desrespeito ao interesse público. Toda a fortuna que ele tem nos paraísos fiscais lá fora, que está se chegando à verdade agora sobre isso. Isso foi em detrimento dos interesses da população de São Paulo. Por tudo isso, não dá para achar que, em nome de uma disputa eleitoral e conjuntural, a gente se encontre e conviva com ele [Maluf] quando tivemos, a vida toda, uma posição de oposição, resistência e antagonismo com essa figura. Foi por tudo isso, não foi só por aquela foto, do Lula na casa dele. Claro que aquilo me feriu. É um simbolismo muito forte no imaginário da sociedade brasileira, mas não foi só isso. É a historia da Maluf, o seu papel na repressão política e o seu desrespeito à ética, à moralidade e ao interesse público como prefeito e como governador biônico do estado de São Paulo. Por tudo isso eu não sinto condição e nem vontade alguma de ficar junto desse cara em qualquer processo, e não seria agora. Eu queria ajudar a eleger o [Fernando] Haddad, mas não junto com o Maluf. A sociedade entendeu minha posição. Eu recebi manifestações do país inteiro e até de brasileiros fora do país que entenderam que minha posição foi na tentativa de ser coerente e conseqüente em relação aos nossos compromissos políticos.
A senhora sabia, desde o início, que Maluf integraria a chapa?
Eu sabia que o PP [Partido Progressista] era partido da base do governo Dilma, como foi no governo Lula. Eu sabia que, lamentavelmente, nesse Brasil, essa política de aliança de governo, de coalizão, é base de sustentação do governo Dilma, como foi no governo Lula. Eu sou contrária a isso, eu luto por uma reforma política que corrija essas distorções no nosso sistema partidário e eleitoral para realmente colocar as coisas nos seus devidos lugares porque eu penso na juventude, nas novas gerações, para que consigam entender a política de outra forma. Não podem se orientar pelos velhos políticos, ultrapassados, que fazem concessões de A a Z. Eu não concordo com a barganha política, que em nome de um minuto e 40 segundos você ceda a compromissos éticos, morais e políticos. Foi isso que orientou a minha posição. Portanto, isso explica uma atitude que eu sei que não foi compreendida por muitas pessoas. Não foi fácil tomar essa decisão. Teve um custo político, mas eu prefiro pagar o custo político a fazer concessões de princípios em relação à minha trajetória política que todos conhecem. Eu tenho defeitos, eu tenho qualidades, mas, com certeza, transgressões éticas e incoerência política, mesmo meus adversários reconhecem que não vão encontrar isso na minha trajetória.
A senhora continua acompanhando os trabalhos em Perus?
Continuo porque estive vinculada às raízes desse processo e foi a partir da descoberta da vala clandestina de Perus que outros estados começaram a abrir seus arquivos, como Pernambuco e Goiás. Hoje eu presido a Comissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que vai nessa mesma direção, de buscar a memória e a verdade. Mas não de ficar apenas na descoberta de quem cometeu crimes e das vítimas desses crimes, mas de exigir justiça. Não podem ficar impunes crimes de lesa humanidade, tortura, assassinatos, estupros, desaparecimentos forçados. Temos que passar a limpo essa história até para cumprir uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que está cobrando do Brasil a apuração desses fatos, a revelação dos seus responsáveis e a justiça para as vítimas desses crimes de violações de direitos humanos que foram cometidas no Brasil e que não terminaram. Elas ainda estão no sistema prisional, na violência que existe nas cidades, que reproduzem essa cultura da violência. Isso tudo está relacionado e exige uma resposta. E nós temos a responsabilidade, como lideranças políticas, de dá-la sociedade brasileira.
O que a senhora espera da Comissão Nacional da Verdade?
A Comissão Nacional da Verdade, a meu ver, está muito devagar, muito lenta. Ela quer descobrir os fatos e elaborar um documento que vai para o Arquivo Nacional. Queremos mais que isso. Nós queremos justiça, que os fatos sejam revelados, comprovados, e os responsáveis, devidamente identificados, para o Poder Judiciário. O Ministério Público deve processar, investigar e punir os responsáveis por essas violações graves dos direitos humanos no nosso país, a exemplo do que está acontecendo na Argentina, do que aconteceu no Chile, Uruguai e Paraguai. Fizemos um seminário internacional sobre a Operação Condor [entre 4 e 5 de julho de 2012] e ficou comprovado que o Brasil deu início a esse terrorismo de Estado, envolvendo vários países, inclusive com apoio dos Estados Unidos. Isso tem que ficar esclarecido, e nós temos a responsabilidade de fazer isso.

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