sábado, 19 de abril de 2014

A história contra-ataca

Por El Pais - Brasil: Quando a Guerra Fria terminou e veio o colapso da União Soviética, os vencedores estavam mais do que satisfeitos, já que estavam convencidos de que seu triunfo era inevitável desde o início. Muitos no Ocidente supunham que a vitória do capitalismo liberal sobre o socialismo totalitário necessariamente seria acompanhada pelo fim das guerras e das revoluções sanguinárias. Hoje, dois líderes poderosos —o presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente chinês, Xi Jinping— estão demonstrando o lado inverossímil dessa concepção.
A opinião ocidental predominante ficou exemplificada no livro de Francis Fukuyama de 1992, O Fim da História e o Último Homem (Rocco), que presumia que a democracia liberal ocidental era o ponto final da evolução sociocultural da humanidade. Em outras palavras, a escatologia cristã transformou-se em um postulado histórico secular.
Essa transformação não era nova. Já a tinham abraçado Hegel e Marx. Em 1842, o historiador Thomas Arnold disse, com uma típica complacência vitoriana, que o reino da rainha Victoria continha “indícios claros da plenitude do tempo”. Depois, resultou que todos esses profetas históricos —que proclamavam a materialização da Ideia Absoluta ou da ditadura do proletariado— estavam absolutamente equivocados.
Não muito após a vitória de Ocidente na Guerra Fria, a ascensão do fundamentalismo islâmico e a volta do tribalismo nacional, inclusive no coração da Europa “pós-histórica”, desafiaram o conceito do “fim da história”. As guerras dos Bálcãs dos anos noventa, as guerras dos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque, as sangrentas revoluções árabes e a exposição das falhas éticas e sistêmicas do capitalismo ocidental na crise econômica global aprofundaram a ideia ainda mais.
Mas talvez os lembretes mais salientes de que a história ainda está muito viva provêm da China e da Rússia. Depois de tudo, nem o sistema capitalista estatal de um partido único da China nem a economia política plutocrática da Rússia são particularmente liberais, e nenhum dos dois países se opõe a afirmar seus direitos (autoidentificados) por meios militares.
Para Pequim, isso significa “defender” suas reivindicações territoriais no mar da China Oriental e no mar da China Meridional, com uma política exterior cada vez mais agressiva, respaldada visivelmente por uma crescente poderio militar. Esse comportamento está aprofundando as tensões regionais que vêm se precarizando faz muito tempo, ao mesmo tempo em que alimenta a concorrência entre a China e a aliança Estados Unidos/Japão —uma situação que lembra a luta prévia à Primeira Guerra Mundial pela prevalência marítima entre o Reino Unido e a Alemania.
Por sua vez, a Rússia lutou impiedosamente para recuperar seu império continental perdido, seja através de uma repressão brutal na Chechênia, na guerra de 2008 na Geórgia ou no atual ataque à Ucrânia. Na verdade, as ações da Rússia na Crimeia compartilham de muitas características perturbadoras com o ataque aos Sudetos, uma região da Tchecoslováquia com uso da língua alemã, por parte de Adolf Hitler em 1938, um catalisador importante da Segunda Guerra Mundial.
O fato é que as ações de Putin não têm a ver só com a Crimeia, nem sequer com a Ucrânia. Da mesma maneira que Hitler estava motivado pelo desejo de reverter os termos humilhantes do Tratado de Versalhes, que pôs fim à Primeira Guerra Mundial, Putin está decidido a reverter o desmembramento da União Soviética, o qual chamou de “a maior tragédia geopolítica do século XX”.
Consequentemente, Putin está desafiando um dos maiores ganhos em matéria de política exterior dos Estados Unidos: o fim da divisão da Europa e o estabelecimento de países livres que pudessem ser atraídos à esfera de influência ocidental. E, ao contrário do presidente norte-americano, Barack Obama, na Síria e no Irã, Putin respeita suas próprias linhas vermelhas: as ex-repúblicas soviéticas não estão para que sejam apropriadas pelo Ocidente e não se permitirá que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) venha a se expandir para o leste.
E mais, Putin fez do nacionalismo étnico um elemento de definição de sua política exterior, utilizando a maioria de língua russa da Crimeia para justificar a sua aventura ali. Da mesma maneira, o nacionalismo étnico motivou o ataque de Hitler à ordem europeia: a zona dos Sudetos era principalmente alemã e a Anschluss austríaca estava destinada a fundir as duas partes vitais da nação alemã.
Em seu polêmico estudo de 1961 sobre as origens da Segunda Guerra Mundial, o historiador A.J.P. Taylor reivindicou a decisão de Hitler de assumir os pequenos Estados sucessores que foram criados em Versalhes para constatar o poder da Alemanha —uma estratégia dos triunfadores que Taylor chamou de “um convite aberto para o expansionismo alemão”—. O mesmo poderia ser dito supostamente hoje da atração fatal da Rússia em relação às ex-repúblicas soviéticas.
Claro, ninguém quer uma nova guerra europeia. Mas as provocações de Putin e o legado dos fracassos no terreno da política exterior de Obama poderiam levá-lo a querer minimizar suas perdas políticas empreendendo uma ação inesperada. Depois de tudo, a agenda de política exterior de Obama em sua totalidade —um acordo nuclear com o Irã, um acordo de paz entre palestinos e israelenses, a reconciliação com aliados distanciados do Oriente Médio e o giro estratégico dos Estados Unidos para a Ásia— agora depende de sua capacidade para domar Putin.
O papel da China está complicando ainda mais a situação. Ao aprovar as ações da Rússia na Crimeia, Xi está se somando a Putin no desafio da ordem mundial que surgiu da vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria. Ao fazê-lo, a China permitiu que os cálculos de poder pesem mais que seus próprios princípios defendidos durante tanto tempo, particularmente a não interferência nos assuntos internos de outros países —uma mudança que seus líderes defenderiam dizendo que os Estados Unidos em repetidas ocasiões demonstrou que o poder, definitivamente, determina os princípios—.
A chanceler alemã, Angela Merkel —cuja educação na Alemanha Oriental deveria ter dado a ela uma percepção especialmente aguda da mentalidade autoritária de Putin—, descreveu o líder russo como afastado da realidade, guiado por uma Machtpolitik do século XIX. Mas é a Europa a que tem vivido uma fantasia: um mundo pós-histórico onde o poder militar não importa, os subsídios podem dominar as forças nacionalistas e os líderes são cavalheiros educados e respetuosos da lei.
Os europeus realmente achavam que o Grande Jogo entre Rússia e o Ocidente havia terminado em 1991. A mensagem de Putin é que nos últimos 25 anos mal foram mal um intervalo.
Shlomo Ben Ami, ex-ministro das Relações Exteriores israelense, é vice-presidente do Toledo International Centre for Peace e é o autor de Scars of War, Wounds of Peace: The Israeli-Arab Tragedy.
© Project Syndicate, 2014.

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