quarta-feira, 20 de maio de 2015

Regulação da mídia não é como jaboticaba

Marcus Ianoni* Jornal do Brasil
As forças progressistas da sociedade brasileira nutrem a expectativa de que o Ministério das Comunicações, comandado por Ricardo Berzoini, apresente à sociedade e ao Congresso Nacional um projeto de lei sobre o novo marco regulatório da comunicação social. Essa tarefa tem um conteúdo democrático fundamental, uma vez que os meios de comunicação de massa são uma estrutura-chave para a realização dos ideais da democracia.
A regulamentação existente para o setor de comunicação é de 1962, o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/62). Ela é obsoleta, devido às mudanças de várias ordens ocorridas desde então, como a revolução nas tecnologias de informação e comunicação e nas formas de propriedade (privatizações, aumento da concentração, fusões e aquisições etc).
Os constituintes de 1988, cientes das mudanças em curso, incluíram na Carta Magna duas determinações até hoje não regulamentadas por meio de legislação infraconstitucional: “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” (Art. 220) e “A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei” (Art. 221). A regulamentação dessas duas determinações é um núcleo da denominada regulação econômica da mídia, que as grandes empresas de comunicação, com o intuito de gerar confusão e impedir a mudança no status quo do setor, associam a censura, autoritarismo etc. Tal resistência é um caso clássico da relação entre interesses econômicos e políticos. Esses dois interesses dos grandes grupos de mídia são contrários a que o poder público, as instituições políticas do sistema democrático-representativo, alterem tanto a sua posição oligopólica no mercado quanto o espetacular poder de ação política propiciado pela detenção de poder econômico em um setor fundamental para a comunicação política, a comunicação de massa.
Enquanto um cidadão comum, através de seu fone móvel, por exemplo, fala com uma pessoa ou, pelos aplicativos, transmite mensagens para um número limitado de receptores, uma grande empresa de mídia possui recursos de propriedade que lhe facultam a produção e distribuição de imensos pacotes de mensagens para quantidades que podem chegar a dezenas de milhões de receptores. Ao longo da história brasileira, os grandes grupos de mídia, com certa frequência, saem do mero terreno da opinião – que, na verdade, nunca é um mero juízo de fato, senão seara de juízos de valor – e partem para a ação, como tem acontecido, sistematicamente, nos períodos eleitorais, desde as eleições de 1989. Recentemente, a pesquisa Manchetômetro mostrou que, mesmo nas eleições de 1998, quando o então candidato do PT, Lula, estava na oposição ao candidato à reeleição pelo PSDB, Fernando Henrique Cardoso, as referências negativas ao oposicionista foram muitíssimo mais frequentes no noticiário de três grandes jornais impressos, Folha de S. Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo, que as dirigidas ao situacionista, com o agravante de que a economia estava muito longe de navegar em céu de brigadeiro, pelo contrário, entre outros problemas, enfrentava um ataque especulativo devido às fragilidades da política de âncora cambial.
A democracia depende de um conjunto de liberdades políticas. Tais liberdades, no plano teórico, legitimam os regimes democráticos e, no terreno prático, a depender de sua forma real de existência, fazem com que a democracia se aproxime ou se afaste do ideal democrático erguido sobre a premissa da igualdade de condições. A liberdade de expressão e o poder de informar e informa-se compõem, entre outras liberdades e direitos, as liberdades políticas fundamentais, mas sua concretização não depende apenas da necessária garantia formal-constitucional de sua vigência, uma vez que elas requerem, também, desdobramentos materiais minimamente igualitários acessíveis à cidadania, ou seja, meios de expressão. Em síntese, a efetiva garantia material das liberdades de expressão, emissão e recepção de informação depende do acesso dos cidadãos aos meios de exercício dessas liberdades. Meios de expressão minimamente igualitários não significa igualitarismo absoluto, mas um patamar mínimo de igualdade de condições para a viabilização material da liberdade de expressão. Não havendo a efetiva vigência desse patamar mínimo, compromete-se a igualdade democrática de condições, compromete-se a capacidade da democracia real mover-se em direção ao ideal democrático de igualdade. Como Tocqueville mostrou de modo brilhante, o conteúdo fundamental do processo democrático é a igualdade e ele pode ser equacionado com a liberdade, para o que as instituições são essenciais.
Por outro lado, o que se verifica em relação à propriedade de mídia é uma gigantesca concentração, conforme vários estudos comprovam. Cerca de dez famílias controlam a mídia no Brasil. Entre os dez principais portais de notícia na internet brasileira, por exemplo, oito são controlados pelas principais empresas de mídia nacionais e dois por grupos estrangeiros. Tamanha concentração compromete a liberdade de expressão e a diversidade de opinião. A inexistência de uma efetiva pluralidade de proprietários, dada a alta concentração do mercado de mídia, opera contra a diversidade de opiniões.
Para mudar essa situação, a campanha “Para Expressar a Liberdade – Uma nova lei para um novo tempo” (http://bit.ly/1FtqBbJ), composta por dezenas de organizações e movimentos da sociedade civil, está encaminhando o Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Comunicação Social Eletrônica (Lei da Mídia Democrática). No que respeita aos mecanismos para combater monopólios e oligopólios, o projeto estabelece o seguinte no Artigo 14: “O mesmo grupo econômico não poderá controlar diretamente mais do que cinco emissoras no território nacional”. O Artigo 15 diz: “O mesmo grupo econômico não poderá ser contemplado com outorgas do mesmo tipo de serviço de comunicação social eletrônica que ocupem mais de 3% do espectro reservado àquele serviço na mesma localidade”. E o Artigo 16 propõe: “Uma prestadora não poderá obter outorga para explorar serviços de comunicação social eletrônica se já explorar outro serviço de comunicação social eletrônica na mesma localidade, se for empresa jornalística que publique jornal diário ou ainda se mantiver relações de controle com empresas nestas condições”.
Em relação à programação e aos mecanismos de incentivo à diversidade, há, entre outras propostas, a seguinte: “As emissoras afiliadas a uma rede deverão ocupar no mínimo 30% de sua grade veiculada entre 7h e 0h com produção cultural, artística e jornalística regional, sendo pelo menos sete horas por semana em horário nobre” (Artigo 19).
Enfim, existe regulação da mídia, mas ela está obsoleta. A radiodifusão é uma concessão pública, de modo que é justo haver uma mínima relação de reciprocidade na definição dos termos dessa concessão entre os beneficiados por ela e os outorgantes, que, no sistema democrático representativo, são os eleitores e seus representantes. É também importante que esse debate seja conduzido da maneira mais transparente, pública e democrática possível, com ampla participação da sociedade civil, de todas as partes interessadas na questão. Atualmente, existe uma estrutura dos meios de comunicação de massa que favorece uma minoria de grupos empresariais oligopólicos, ferindo a qualidade da democracia e as liberdades políticas, por atentar contra a indispensável igualdade mínima de condições requerida para a viabilização material do efetivo exercício da liberdade de expressão. Esse debate não é uma jaboticaba, já foi realizado em inúmeros países desenvolvidos. Jaboticaba é a campanha conservadora e difamatória contra a regulamentação econômica da mídia.
* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador das relações entre Política e Economia.
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