segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Enfrentando o machismo da revista Época

Quem primeiro estranhou foi o Diário do Centro do Mundo:
Depois de publicar um texto em primeira pessoa de uma panela (não é piada), a Época inova mais uma vez e dá uma espécie de crônica explicando a crise: Dilma não faz sexo. Quando você se queixar da falta de inteligência, lembre-se da Época e de que a coisa sempre pode piorar.
O DCM fazia referência ao depoimento de uma panela — isso mesmo, de uma panela — a Flávia Tavares: “Alguns, mais exaltados e grosseiros, alternaram os tapas no meu traseiro com xingamentos sexistas contra a presidente. Não fiquei nada feliz apanhando de alguns machistas. Os tempos modernos não comportam esse tipo de postura. Até uma panela velha sabe disso”, declarou a panela depois de descrever seu papel nos protestos contra Dilma e Lula.
Aparentemente, a panela politicamente correta da Época não fez plantão nos últimos dias. Pois não é que a revista dos irmãos Marinho reincidiu na imbecilidade?
O texto, reproduzido abaixo, sugere que Dilma precisa “erotizar-se”, seja lá o que isso signifique.
Trecho:
A presidente da nação não entendeu o principal recado de boa parte dos manifestantes que foram às ruas no domingo, 16 de agosto: eles querem que ela expresse uma sexualidade, uma comunicação corporal que crie empatia, proponha, acrescente, acolha.
Fernando Brito, no Tijolaço, que noticiou a decisão da revista de tirar o texto do ar, escreveu:
Época, como sub-Veja que sempre foi, apenas colhe os frutos de uma mídia empresarial que perdeu todo o limite de civilidade e bota Jabores, Rodrigos, Reinaldos, Gentilis e outros a rosnar. E outros que, sibilantes, revestem a peçonha em termos e temas pretensamente “cults”. Tornamo-nos a república dos imbecis, dos ofensores, da xingação. Que época!
Dilma e o sexo
Será que a presidente do Brasil precisaria erotizar seu eleitorado? Não estou falando de sexo, muito menos de decotes ou fendas
JOÃO LUIZ VIEIRA
20/08/2015 – 08h00 – Atualizado 20/08/2015 08h00
“Uma vez tomada a decisão de não dar ouvidos mesmo aos melhores contra-argumentos: sinal do caráter forte. Também uma ocasional vontade de ser estúpido”, Friedrich Nietzsche (1844-1900), filólogo, filósofo, crítico cultural, poeta e compositor alemão.
Dilma Rousseff precisa tomar a decisão de nos erotizar. Não só a mim, que abdiquei de minha intenção de voto na eleição passada, mas, principalmente, a quem se decepcionou com suas frases desconexas ou duras, seu destempero ou seu cinismo, sua mudez ou sua virulência verbal.
Dilma, se fosse seu amigo lhe diria: erotize-se.
Como já dizia Oscar Wilde (1854-1900), escritor, poeta e dramaturgo britânico, muito brilhantemente reproduzido com sua frase na série House of cards (Netflix), tudo tem a ver com sexo, menos sexo. Sexo tem a ver com poder. A presidente da nação não entendeu o principal recado de boa parte dos manifestantes que foram às ruas no domingo, 16 de agosto: eles querem que ela expresse uma sexualidade, uma comunicação corporal que crie empatia, proponha, acrescente, acolha.
Não o ato em si, evidentemente, nem se quer que ela use mais decotes ou fendas. Erotismo em sua essência psíquica. Sexo não é apenas o contato entre genitais. É o momento em que duas ou mais pessoas se encontram ou se fitam para dar prazer mútuo, e também se destruírem. Poder tem a ver com esse controle sobre o desejo erótico alheio.
Dilma, 67 anos, foi casada duas vezes (Cláudio Galeno Linhares, jornalista, e Carlos Franklin Paixão de Araújo, advogado), teve filha (Paula, 39) e neto (Gabriel, 4). Sexistas e misóginos têm produzidos uma série de adesivos que extinguem sua expressão feminina. A questão é se ela quer nutri-la no cargo mais alto do funcionalismo público, como a gerente mais ilustre de nossa vida cívica.
Não a conheço pessoalmente, nem sei de ninguém que a viu nua, mas é bem provável que sua sexualidade tenha sido subtraída há pelo menos uma década, como que provando exatamente o contrário: poder e sexo precisando se aniquilar.
Será que Dilma devaneia, sente falta de alguém para preencher a solidão que o poder provoca em noites insones? Será que ela não se ressente de um ser humano para declarar que quer mandar todo mundo para aquele lugar, afinal ela não tem como dizer isso para o neto, supostamente seu melhor amigo, que ainda nem sabe ler? Será que ela não sente falta de comer pipoca enquanto assiste suas séries de TV paga, que tanto ama e a faz relaxar das pressões inerentes ao cargo?
Marta Suplicy, 70, estudiosa dos assuntos da mente antes mesmo de ser petista, senadora e entrar no PMDB, é uma ex-colega de partido que mostra, em todas as suas escolhas, que entende bem sobre o que todos os estudiosos da sexualidade disseram desde antes de nascermos.
Marta, três maridos, três filhos, cinco netos, falava de clitóris e de orgasmo às dez da manhã no extinto TV Mulher dos longínquos anos 1980, época em que músicas eram censuradas por citar algum palavrão. Marta, aliás, quando ministra do turismo do governo Luis Inácio Lula da Silva, entre 2007 e 2008, até associou caos aéreo com preliminares. Lembra do “relaxa e goza”? Pois.
Dilma, não. Dilma é de uma geração de mulheres anti-Jane Fonda, que acreditam que a sexualidade termina antes mesmo dos 60 anos, depois de criados filhos e ter tido seus netos. A atriz norte-americana foi uma combatente política quando era antidemocrático falar mal dos Estados Unidos, nação que estava dizimando vietnamitas e ela, no auge da beleza e do erotismo explícito como a emblemática personagem Barbarella, posou numa trincheira.
Isso foi no fim dos anos 1960, quando Dilma começou a lutar por democracia nos nossos anos de ditadura (1964-1985). Jane hoje é uma contumaz usuária de testosterona para regular seus hormônios e manter sua sexualidade gritando aos 77 anos. A atriz, precursora da autoestima para uma geração de mulheres no mundo inteiro, chega ao terço final de sua via exalando erotismo.
Dilma, não. Dilma criou uma personagem para lidar com a rudeza de seu ofício: conjunto de blazer com mangas três quartos, todos com cortes idênticos, calça sempre em acordo com o tom da escolha para cobrir o tronco, e sapatos sempre baixos, sem cadarços, e jóias semi-invisíveis.
Dilma quer ser invisível, por isso se lacra. Dilma usa um uniforme que nubla sua sexualidade. Além disso, tornou-a uma mulher assexuada que, de antemão, avisa em mesas de reunião no Palácio do Planalto ou em plenário da ONU que o gênero nunca estará em questão no seu armamento discursivo. Seria menosprezar seus genes e sua inteligência.
Dilma erra. O erotismo é um princípio, um meio, um fim e, mesmo camuflados, estamos opinando do tom do cabelo à escolha do sapato. O Brasil, país mundialmente conhecido pela desmedida importância dada ao erotismo, quer menos preliminares e mais gozo. Ao contrário do conforto que colegas de poder e de geração como a alemã Angela Merkel, 61, e a chilena Michelle Bachelet, 63, que podem se vestir de samambaia que ninguém dá bola, já que estamos falando de duas nações onde o erotismo nunca serviu de carimbo.
Diz-se que as amazonas, filhas de Ares, deus da guerra, cortavam um dos seios para manusear o arco e flecha e lutar. Ou seja, o feminino guerreiro precisaria extirpar a própria feminilidade. Não deveria, mas muitas vezes a exclui, e exemplos temos aos montes. Fragilizar-se é compatível com o cargo que essas senhoras almejam? Talvez sim, talvez não.
Dilma, se fosse seu amigo lhe diria: erotize-se.
*João Luiz Vieira é editor de ÉPOCA, jornalista profissional há 26 anos, roteirista de TV, dramaturgo, autor dos livros Kama Sutra Brasileiro e Sexo Sem Tabu (Editora Planeta), coordenador do e-book Sexo com Todas as Letras (e-galaxia), sócio-proprietário do site Pau Pra Qualquer Obra, e pós-graduado em Educação Sexual. Para falar com ele: jluiz@edglobo.com.br.

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