O problema é a negrada. E também os índios. E pior: o problema é a mistura, um povo preguiçoso e sem iniciativa.
II - Essa era a base do raciocínio da “elite”, da aristocracia, até a Revolução de 30. Tivemos alguns ciclos econômicos: o da borracha, em Manaus; o do café, em São Paulo; o do cacau; o da cana, no nordeste. Ali estava o dinheiro. E ali estava a aristocracia, que não raro usava trajes pesados, europeus, neste nosso calor tropical.
III - E aí vieram idéias de “purificar” as raças. Antes disso houve Cesare Lombroso, na Itália, catalogando as gentes pela aparência física. Depois, iniciam as teorias da eugenia. A melhora pela genética. Havia raças superiores, havia raças inferiores. Era preciso esterilizar as raças inferiores.
IV - Nesse meio tempo, foi Getúlio quem editou um Decreto obrigando os clubes de futebol a aceitar negros. O esporte era absolutamente elitista. E também foi Getúlio quem resolveu cadastrar as escolas de samba no Rio e aportar recursos a título subvenção. Ali o samba cresceu, ali Noel explodiu, e veio Chico Buarque, claro, como o grande herdeiro de Noel, quase sua reencarnação. Também no futebol e no samba há Getúlio Vargas.
V - Mas como podia a negrada, esse povo mestiço, desenvolver alguma coisa? E aí veio a Petrobrás. E foi ridicularizada: aqui não há petróleo, disseram as multinacionais. E havia. E veio o ITA - o Instituto Tecnológico da Aeronáutica. Um centro de excelência extraordinário, boicotado à exaustão pelo Brigadeiro Eduardo Gomes, o grande chefe da UDN, para tristeza do Brigadeiro Montenegro. E veio a PanAir, obra, também, da nossa genialidade.
VI - Nelson Rodrigues é quem apanha genialmente isso: conta a história da seleção brasileira. Nossos negrinhos e nossos misturadinhos lá, enfrentando os arianos. Não sabíamos que éramos geniais. Comportávamo-nos como vira-latas, e éramos tratados como vira-latas: a botinadas. “De nossa boca, pendia a baba elástica e bovina das humildades abjetas”, disse Nelson. E aí nos revelamos geniais no futebol.
VII - Éramos geniais no futebol, éramos geniais na música. Vários ritmos, uma criatividade explosiva. E fomos geniais na criação do ITA, e fomos geniais na criação e no desenvolvimento da Petrobrás. E fomos geniais, também, na criação do BNDE, hoje BNDES, para apoiar a indústria. E fomos geniais, também, na criação do Banco da Borracha e na criação do Banco do Nordeste do Brasil. E somos geniais até hoje: pergunte se o “chef” do restaurante francês da sua cidade não é cearense. É cearense, sim. Veja a quantidade de músicos, de cientistas brasileiros no mundo.
VIII - Mas essa mesma aristocracia que usava casacões continuava a duvidar da “negrada”, da “mestiçagem”. De um lado, a velha aristocracia latifundiária pecuarista, ou cafeicultora, ou cacaueira. De outro lado, surgia a burguesia industrial. Ali tínhamos o Conde Matarazzo. Tivemos o Senador José Ermírio de Moraes. Tivemos Mário Wallace Simonsen - não o economista, o empresário dono da PanAir.
IX - Pois ali havia um conflito: a burguesia brasileira contra a aristocracia cafeicultora, cacaueira, pecuarista, canavieira. E tivemos grandes, extraordinários empresários. mas permanecia o velho conflito. Permanecia a visão aristocrática, de casacões de lã, de que este País não daria certo, contrariamente à opinião da burguesia brasileira. Era - e é - a aristocracia contra a burguesia e o povo.
X - Digo isso porque no programa Roda Viva, aquele que entrevistou o Ministro Chefe da AGU, havia um jornalista do Estadão que, do alto da sua pretensão de vassalo da aristocracia cafeicultora, resolveu ridicularizar a questão do petróleo do pré-sal. Ridicularizou o tema. Deixou claro que nós, a negrada, a mestiçagem, não temos condições, nem inteligência, nem dinheiro, para desenvolver o pré-sal. Precisamos dos arianos, dos sangue-puro, da branquelagem.
XI - Está aí a síntese. O “complexo de vira-latas” é a evidência absoluta do racismo que persite. Nâo diz respeito aos brancos, tão somente. Diz respeito a nós, brasileiros. O racismo, aqui, se volta contra todo o povo, contra todos os brasileiros, até mesmo contra os que têm olhos azuis. Se dependesse dessa gente, como o sujeito do Estadão, não teríamos o ITA, a Petrobrás, a Votorantim, o grupo Matarazzo. E mais: foi Fernando Henrique que, em sua festejada obra, referia a “vocação caudatária da burguesia nacional”. Segundo ele, na sua “Teoria da Dependência”, há uma vocação da burguesia nacional para simplesmente se atrelar, de forma secundária, aos grandes grupos econômicos internacionais. Não é verdade. Essa vocação é da aristocracia rural, não da verdadeira burguesia brasileira. Aqui cito, de novo, o Conde Matarazzo, o Senador José Ermírio de Moraes, Mário Simonsen, Rubem Berta, cito Raul Randon, empresários nacionais que tiveram um papel extraordinário no desenvolvimento do Brasil. Ou seja, tivemos - e em parte temos - uma burguesia extraordinária, inovadora, industrial, que faz frente ao que há de melhor, de mais avançado, no mundo.
XII - O jornalista do Estadão nos olha de cima: os “negrinhos”, os “misturadinhos”, conseguirão explorar o pré-sal? Ora, é preciso entregar para as multinacionais. Olhe a telefonia - uma exploração cotidiana, uma extorsão brutal. Olhe a energia elétrica, também no mesmo rumo. Desde quando a Espanha foi referência em bancos? Desde quando Portugal teve tecnologia bancária para exportar? Desde quanto a Itália foi modelo de telefonia? São estrangeiros que nada acrescentaram aqui. Mas é preciso desfazer da nossa gente, da nossa tecnologia, da nossa inteligência. É preciso ridicularizar tudo. É preciso manter um ar aristocrático - europeu, na nobreza, e norte-americano, na grosseria, e esculhambar tudo o que é brasileiro. Olhe só a quantidade de pilotos de aviação civil que formamos e exportamos; olhe a quantidade de engenheiros; olhe nossos doutores que estão até mesmo na Nasa. Olhe a quantidade de brasileiros que são professores em universidades de primeira linha em outros países. É povo nosso, brasileirinho, misturadinho, formado neste nosso grande caldeirão festejado por Darci Ribeiro. Olhe Felipe Massa.
XIII - Não tenha ilusão, amigo. A mesma mentalidade que levou à quebra da PanAir, à quebra da TV Excelsior, à quebra do jornal Última Hora, à privatização da Vale do Rio Doce, é exatamente a mesma: a “negrada”, a “mestiçagem”, não sabe produzir, não sabe pensar, não trabalha porque é preguiçosa. Então vem um um golpe de cima e quebra a empresa. É o que houve com a PanAir, com a Excelsior, com a última hora. Quebra-se a empresa, boicota-se, e depois a culpa é jogada no povo brasileiro.
XIV - Foi uma grande oportunidade aquela da entrevista: ver um sujeito tão desnudo em suas opiniões: o pré-sal é ridículo; o Brasil é um País ridículo; qualquer espanhol grosseiro é mais ingeligente do que nós, qualquer norte-americano picareta é mais esperto do que nós, qualquer padeiro francês é mais criativo do que nós, qualquer nobre decadente italiano nos joga no chão. Ou seja, somos um povo rasteiro, que precisa ser conquistado. Esqueçamos o sucesso da Petrobrás, da Vale, da Matarazzo, do ITA, da siderurgia que criamos. Esqueçamos o pró-alcool, nossos cientistas. Esqueçamos tudo.
XV - O que há por detrás disso, amigo, é o velho racismo dos “carcomidos”, como eram chamados os defensores da República Velha, ou seja, dos que foram derrubados por Getúlio em 30. O sujeito do Estadão apenas verbalizou isso, do alto da autoridade de representante do jornal que combateu Getúlio, do representante da aristocracia cafeicultora, e que depois apoiou o golpe de 64.
XVI - Enfim, é isso: na visão deles, nós, a negrada, a mestiçagem, não conseguiremos fazer nada. E precisamos ser tutelados por consultores picaretas norte-americanos, padeiros franceses, comerciantes espanhóis, técnicos em mecânica alemães, nobres decadentes italianos e afetados almofadinhas ingleses. Basta ser estrangeiro que é bem vindo e é superior a nós. E esse pessoal servil será festejado por gente igual a esse jornalista que buscou ridicularizar a questão do petróleo do pré-sal. E esse pessoal servil será contratado por essa gente, receberá anúncios dessa gente, será consultor dessa gente, será convidado a fazer visitas “culturais” àqueles países, com tudo pago.
XVII - Amigo, é tudo a mesma mentalidade: o Brasil não pode ser grande, embora seja. Tudo deve ser esculhambado, tudo deve ser aviltado, tudo deve ser difamado. Isso diz respeito à PanAir, à Varig, ao petróleo do Pré-Sal, à Excelsior, ao Pró-Álcool. É a mesma matriz de pensamento, a que busca nos subjugar, nos aviltar, nos humilhar. É que a diz que trabalhador é preguiçoso, que aposentado é vagabundo e já ganha demais. A discussão de uma grande companha aérea internacional está aí. A discussão da tecnologia brasileira está aí: ou a mestiçagem que precisa ser tutelada, ou a grandeza, a genialidade, a alegria da nossa raça brasileira. Escolha.http://www.castagnamaia.com.br/blog/
Um comentário:
Não só a negrada mas o sem terra, sem teto, sem tudo, sem nada. Todos filhos da oposição atual, dos exclusores, da democracia das minorias, dos século xx perdido, dos presidentes doutores.
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