quinta-feira, 22 de abril de 2010

A BRASÍLIA QUE EU VI

Por Urariano Mota
Recife (PE) - Nos 50 anos de Brasília, a capital do país sonhado em todo o mundo, prefiro falar de uma Brasília menor, que conheço. Nos limites desta coluna, lembrarei outra Brasília, de 65 hectares, teimosa em sobreviver desde o seu nascimento.

Brasília Teimosa é um bairro do Recife que sempre lembrou paradoxos. Nascida na Zona Sul, em terras valorizadas, foi construída na praia por invasões de pescadores e sem teto. Tendo o nome de Brasília, adaptou a sua arquitetura pelo adjetivo, Teimosa, porque jamais seus casebres foram as linhas curvas de Niemeyer. Eram, antes, linhas de fuga, para que os moradores fugissem das prisões da polícia. Hoje, Brasília Teimosa está urbanizada, repleta de beleza e restaurantes. Os que moravam em palafitas foram transferidos para conjuntos habitacionais, deixando longe aquele ciclo de Josué de Castro: homem come caranguejo que vira fezes que são comidas por caranguejos. A maioria, que não morava em palafitas, hoje ocupa casas cujos terrenos são disputados por imobiliárias.

Mas nem sempre foi assim, é claro. Da minha experiência no bairro, onde vivi de 1972 a 1977, lembro que suas ruas não tinham calçamento, eram cobertas de areia da praia que sempre nos presenteava com traiçoeiros bichos-do-pé. Raras eram as casas de tijolos, quase todas eram de taipa ou de madeira. Saneamento nenhum, água era tirada de poços ou comprada em caminhões-pipa. A construção urbanística de Brasília Teimosa somente poderia ser melhor sentida vista de cima, de helicóptero. Como na época esse transporte não era (nem é) para o meu bico, podíamos sentir o projeto de convivência e racionalidade na Brasília recifense a caminhar na areia fofa: entrava-se em beco e se saía em beco. Mas às vezes saíamos em lugar nenhum.

Os números das casas eram uma graça, um produto do maravilhoso arbítrio humano. Avistava-se um 36, sei disso porque morei num certo 36, lembro bem, mas a casa vizinha era 60, e a outra, a seguir, número 11. Por isso os carteiros, muitas vezes, achavam as casas perguntando pelos destinatários aos moradores mais conhecidos. Ainda assim, havia deles que respondiam ao carteiro com a pergunta: “como é ele?”. As ruas, por sua vez, não sei se obedeciam a alguma pedagogia avançada de alfabetização. As ruas não tinham nomes, elas se chamavam por letras. Eu mesmo habitei durante mais de um ano na rua K. A rua era cheia de sol, agitada, barulhenta, de um azul de tinir. A rua era a negação radical dos enevoados relatos que eu lia então de Kafka.

E por falar em relatos que então eu lia, recordo algo mais sério. Eu morava em Brasília Teimosa, digamos assim, por expressão de uma política de resistência à ditadura. Que no meu caso queria dizer não só viver com o povo, participar com o povo, mas ser o próprio povo. Mas não estava escrito que o meu natural acompanhasse todas as manifestações e modos de ser de uma população sem acesso a bens universais da cultura. Isso está muito sociológico, porque eu quero simplesmente dizer: em Brasília Teimosa eu lia Proust, eu acompanhava a fuga de Albertine enquanto Roberto Carlos e Reginaldo Rossi estrondavam na vizinhança. Mas jamais fui louco de reclamar do som da disparada de Albertine.

A última vez em que voltei a Brasília Teimosa foi à procura do garçom de Jarbas Vasconcelos, vocês lembram bem. Não achei o restaurante nem o preguiçoso garçom que, segundo o imaginoso senador, teria deixado de trabalhar para viver de bolsa-família. Nessa volta, perguntei a duas senhoras idosas, uma delas moradora do bairro há mais de 40 anos:

- Boa tarde. Me diga por favor: esse restaurante aí é frequentado por Jarbas?

- Jarbas?!

- Jarbas Vasconcelos, o senador.

- (E a senhora, com pena do repórter) Hen-hen… Só se ele vem escondido, de madrugada. Eu passo o dia todinho aqui, sentada, olhando o movimento. A não ser que ele vá em outro. Mas pergunte aos empregados, eles sabem. O senhor é pastor?

Como não é comum evangélico de barbas grisalhas, imagino que a bondosa senhora me confundiu com algum fundador de igreja nova. O que me deixou muito feliz. Para quem, envergonhado, lia Proust em Brasília Teimosa foi um ótimo engano. O ex-morador da rua K número 36 voltava ao bairro com aparência de pastor. Em busca da alma perdida do garçom. http://www.diretodaredacao.com/

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