terça-feira, 8 de junho de 2010
A revolução dos pobres
O Bolsa Família é distribuição de renda sem submissão às leis do mercado, e é condição, portanto, para a transformação dos valores sociais e políticos.
Por Emiliano José
Encontrei-me com Giuseppe Cocco no lançamento de um livro em que os autores eram Boaventura dos Santos e Tarso Genro, além dele próprio. Os três estavam à mesa, e o encontro se deu no Teatro Vila Velha, velho espaço da resistência e criatividade cultural de Salvador. Não me lembro a data exata, Tarso Genro ainda era ministro. Pela primeira vez, ouvi uma abordagem original sobre o Bolsa Família, esse extraordinário programa executado pelo governo Lula, hoje famoso mundialmente por suas espantosas conseqüências positivas para os pobres do Brasil.
Boaventura dos Santos, um dos mais importantes intelectuais do mundo atualmente, a par de fazer uma análise muito positiva sobre o governo, arriscou-se a dizer que ele lamentava apenas que houvesse programas de natureza assistencialista no governo Lula, naturalmente querendo referir-se, entre outros, ao Bolsa Família. Giuseppe Cocco não contou conversa e não revelou nenhum temor reverencial diante do monstro sagrado Boaventura dos Santos. Diria que desmontou os argumentos do intelectual português, subvertendo os termos da análise. O buraco era mais embaixo. Vou tentar interpretar a sua fala.
E o faço porque ela foi reavivada no dia 25 de maio, na histórica cidade de Cachoeira, a 100 quilômetros de Salvador, e histórica porque Cachoeira antecipou a luta pela independência em junho de 1822. Foi reavivada na conferência feita por Giuseppe Cocco sob o título As políticas sociais do governo Lula para algumas centenas de trabalhadores, lideranças religiosas, muitos estudantes e professores da Universidade Federal do Recôncavo, vindos de Cruz das Almas, Valença, Conceição do Jacuípe, Santo Amaro, Muritiba, Maragogipe, São Félix, Santo Antônio de Jesus, além naturalmente de Cachoeira, municípios do Recôncavo Baiano.
A conferência e o debate foram promovidos pelo Núcleo de Comunicação e Política, da Universidade Federal da Bahia, que lidero ao lado dos professores Gilberto Wildberger e João Carlos Salles, ambos da UFBA. Ela integra um ciclo denominado A política e a vida na esquina do mundo, que já trouxe a Salvador o jornalista Mino Carta para a conferência O partido político da mídia. A Universidade Federal do Recôncavo, co-patrocinadora da conferência de Giuseppe Cocco, tem sacudido a região positivamente, seja do ponto de vista das condições materiais, seja principalmente da oxigenação do pensamento, do estímulo ao debate. E a presença de Cocco foi um desses momentos altos de reflexão, trazendo um pensamento original a toda a região.
Voltemos, então, à fala de Cocco, e creio que ele, um dos principais discípulos de Antonio Negri, merecia muito mais destaque em nossa mídia. Mas, nossa mídia é o que é, e a fala dele vai na contramão de tudo que ela pensa sobre o governo Lula. Ele disse lá, no lançamento do livro a que me referi no início desse texto, e cá, no dia 25 de maio, que a política dos pobres dos dois governos Lula desnorteia a oposição conservadora – ou a mídia conservadora, que é a mesma coisa – e a extrema-esquerda, e que curiosamente as duas convergem nas críticas à política social do governo Lula, e particularmente ao Bolsa Família. É estranho, mas compreensível que direita e extrema-esquerda se encontrem, mas tem sido assim também no Congresso Nacional.
Antecipo que posso equivocar-me na interpretação do pensamento dele porque não estou sendo literal. Tento, no entanto, ser o mais fiel possível. Eu o ouvi agora e antes, em duas ocasiões. Na contestação a Boaventura, recordo-me, ele surpreendeu a todos ao conferir ao programa Bolsa Família uma natureza revolucionária. Lá como cá, ele afirma que o Bolsa Família tem o mérito de não se render à lógica econômica e de se inscrever positivamente a favor dos pobres, numa conjuntura em que o capital não está mais limitado a um determinado país ou região e nem se baseia mais na industrialização como motor do desenvolvimento. O capitalismo de hoje está em todo lugar e funciona em rede, por esquinas como ele mesmo diz, “juntando as esquinas e mantendo as suas especificidades – digo isso para jogar um pouco com o tema desses colóquios ricos que vocês estão fazendo”.
O capitalismo neoliberal, globalizado e organizado em rede, trabalha pela exclusão sistemática do acesso aos direitos e pela redução dos sistemas de proteção social. Desse ângulo, é excludente. Isso, no entanto, é apenas um lado das transformações do capitalismo nessa quadra do mundo. E aí vem outra surpresa da análise dele: esse novo capitalismo é altamente inclusivo. Mas, anotem, inclusivo no sentido de incluir todo mundo dentro do processo de exploração, desde algumas centenas de milhões de chineses até os 200 milhões de brasileiros. Anteriormente, ser incluído era estar integrado ao capitalismo industrial e ao que a ele se ligava, era o capitalismo do mundo formal, do emprego formal. O resto, ficava excluído.
O capitalismo contemporâneo funciona de forma diferente, muito diferente, incluindo todo mundo num mesmo sistema, inclui cada esquina na sua particularidade, “conectando essas esquinas em rede”, como disse em Cachoeira. Ele usou o exemplo, que pode ser entendido como uma grande metáfora, ou como expressão dessa nova e estonteante realidade, que é o da telefonia.
Antes, sob o capitalismo industrial ou planejado, era a telefonia fixa, direito adquirido apenas para quem tinha um emprego. “Se eu tinha uma inserção na relação salarial era porque eu tinha um emprego, e assim era considerado cidadão, por isso eu tinha um telefone fixo”. Se não tivesse trabalho assalariado, não tinha o direito do telefone fixo.
O telefone celular, como expressão das mudanças do capitalismo, como expressão do regime de acumulação, “cabe no bolso de qualquer esquina, construindo e se constituindo como base para uma rede”. Ele inclui os excluídos enquanto tais.
E de que modo inclui, com que novas características? O capitalismo contemporâneo explora não só o nosso tempo de trabalho quando estamos dentro da fábrica ou submetido a qualquer emprego. Ele explora todo o nosso tempo de vida, exatamente como no modelo da telefonia celular, que incluiu a todos e que subtraiu a possibilidade da separação entre o tempo do trabalho e o tempo livre. Não há mais tempo livre. O novo capitalismo explora a vida de todos o tempo todo, junta todos num mesmo saco.
“O que é explorado é a nossa própria relação social, é a nossa própria forma de vida”. Ainda permanecendo na metáfora do celular, ele afirma que, nesse caso, o que é explorado quando se cobra o uso do telefone celular é o pulso, é o minuto do uso pulso. Mas o que é esse minuto? É o que decidirmos que seja. “É o que usamos para viver, para trabalhar, para circular, pra ter afetos, para organizar a vida”. Em síntese, o que é explorada é a nossa vida social, e não a nossa vida individual simplesmente. Vivemos sob um capitalismo que explora toda nossa vida em sua diversidade, na sua multiplicidade.
Num capitalismo dessa natureza, as políticas sociais não podem mais ser vistas como compensação em relação aos problemas de extrema pobreza, nem de falta do crescimento econômico, mas elas, as políticas sociais do governo Lula, significam o reconhecimento das dimensões produtivas da vida, o reconhecimento de que todos são produtivos, mesmo os que não estão empregados formalmente.
Eu volto agora à contestação que Cocco fez a Boaventura. Quem disse que o capitalismo pode ensejar o pleno emprego? Quem disse que ainda vige o capitalismo industrial, com seu sonho de tornar a todos um operário ou tornar todos empregados em torno da lógica fabril?
O Bolsa Família, ao reconhecer o capitalismo em rede, ao localizar a multidão de pobres que se integra a ele, e que não se integrará nos termos formais anteriores, persegue uma lógica anticapitalista, não se subordina à lógica do mercado, não se atém à idéia de que o mercado irá absorver todos no emprego formal, por mais crescimento econômico que o país experimente.
Por isso, estava certo Lula quando disse que longe de diminuir tinha que aumentar os recursos para o Bolsa Família. E me lembro também de Patrus Ananias, numa das ocasiões em que veio à
Bahia, quando disse que não se tratava de pensar na “porta de saída”, como afirmam alguns destacados membros de nossa burguesia, de nossa mídia, de nossa oposição desnorteada, mas de pensar em abrir mais e mais as portas de entrada para os pobres.
O Bolsa Família é distribuição de renda sem submissão às leis do mercado, e é condição, portanto, para a transformação dos valores sociais e políticos, e também para a transformação da política econômica, para provocar outra lógica na política econômica.
“É necessariamente uma política dos pobres pelos pobres que, necessariamente, é a política da diferença”. Por isso, talvez, é que Cocco, numa palestra que fez pela manhã no mesmo dia 25, no auditório da Reitoria da Universidade Federal da Bahia, tenha dito que a verdadeira política cultural do governo Lula era o Bolsa Família que, com a distribuição de renda, reconhece a dimensão produtiva da vida, transforma o conceito de cidadania e, com isso, o próprio conceito de cultura “na medida em que a cidadania não é mais, e não será mais, a conseqüência do mercado, nem da recuperação do processo de industrialização anterior”.
A cidadania será a condição, o ponto de partida para o desenvolvimento que seja, ao mesmo tempo, outro desenvolvimento, que não precisa ser mais capitalista, que caminha para a reformulação do próprio conceito de valor. Como podem ver, é muita provocação num único autor, e que por isso merece ser lido e estudado.
Publicado no site da Carta Capital (07/06/2010)
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Editado(a) por
Emiliano José
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