sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Por que José Serra perdeu a eleição?

Em contraste com sua imagem autoritária, que não admitia divergência, o candidato do PSDB à Presidência deu, aparentemente, espaço até demais para quem estava à sua direita em sua campanha.
Renato Janine Ribeiro | Para o Valor, de São Paulo
Críticas duras, ainda que discretas, têm sido dirigidas a José Serra depois do resultado das eleições. É bom que o PSDB esteja discutindo seu futuro, e que bons artigos de seus pensadores saiam na imprensa. Gostaria, porém, mesmo não tendo votado em Serra, de defendê-lo de algumas das críticas a ele dirigidas, sobretudo por sua família política.
Acreditei, e escrevi neste mesmo espaço, que Serra começava a campanha, no segundo trimestre de 2010, com uma estratégia inteligente. Durante anos, a oposição à direita do Partido dos Trabalhadores (e gostaria que, no Brasil, entendêssemos a palavra “direita” sem sentido pejorativo: não é mais a direita ditatorial) cerrou fileiras em torno do governador de São Paulo, como seu candidato ideal para tirar da Presidência o PT. Ora, isso parecia deixar Serra em condições muito boas. Ele não precisava agradar a quem estava à sua direita. Eram votos garantidos.
A direita não joga votos fora, não anula sufrágios por princípio: votaria nele de qualquer forma. Com esse estoque assegurado, ele podia partir para a disputa dos votos decisivos, que vou chamar de “centro”. E isso, a meu ver, explicava até a grosseria com que tratou Miriam Leitão, numa entrevista na rádio: ele não precisava prometer a autonomia do Banco Central, porque “a direita”, que queria essa autonomia, iria votar nele de qualquer jeito. Serra não concordava com esse poder tão forte da diretoria do Banco Central, mas o importante é que ele poderia ir para o lugar que, historicamente, sempre foi o dele – o desenvolvimentismo, não o monetarismo que Fernando Henrique apoiou na pessoa de Pedro Malan.
Serra estava, assim, bastante livre para ser quem ele é. Certa vez, Duda Mendonça comentou que seu papel, como marqueteiro na campanha vitoriosa de Lula em 2002, não tinha sido o de inventar um novo Lula, com terno Armani, mas apenas o de mostrar Lula “como ele é”: uma pessoa bem-humorada, de bem com a vida, não o barbudo raivoso das três derrotas sucessivas. Acredito que alguém ganha melhor as eleições quando é quem é, para usar a expressão de Duda Mendonça. Serra, claro, não é igual a Lula; não faria sentido ele agir como o agora ex-presidente; mas poderia, deveria, ser quem ele, Serra, é.
Daí que um primeiro ponto, corretamente analisado por Serra, fosse que deveria ser o candidato pós-Lula e não anti-Lula. Pode ter soado até ridículo o jingle que, em agosto, depois do “Silva” propunha o “Zé”, mas a ideia matriz deveria ser melhorar, corrigir, aprimorar o que Lula introduziu na política brasileira. O problema é que, se eu estiver certo, quem apoiava Serra não endossava aquela que eu imagino ter sido a análise dele. Voltaremos a isso.
Outra comparação com Lula se impõe. Até a última eleição, ele foi o único nome que o PT tinha para a Presidência. Isso significou que, pelo menos em 1994 e 1998, a esquerda petista lançava seu nome – e depois lhe atava as mãos, aprovando um programa partidário que o deixava longe da maioria dos votos.
No fim da década de 1990, participei de um caso interessante. Eu pensava no fato de que, no Brasil da época, o PSDB se aliara à direita no âmbito federal, o da moeda e da economia, mas nas eleições estaduais, sobretudo quando havia segundo turno, a antiga aliança contra a ditadura levava PSDB e PT tenderem a caminhar juntos. Em São Paulo, das duas vezes que FHC se elegeu tranquilamente presidente da República, ganhando as eleições já no primeiro turno (em 1994 e 1998), Mario Covas precisou disputar o segundo turno contra a direita – que apoiara FHC – e teve o apoio declarado do PT para vencer.
Refletindo sobre isso, e tendo um amigo que depois seria ministro de Lula, propus que fizéssemos um seminário sobre alianças, examinando em especial como a Alemanha lida com alianças federais diferentes das estaduais. Encontrei o próprio Lula duas ou três vezes enquanto discutíamos esse seminário (que acabou não ocorrendo) e notei que a questão dele não era essa – e sim a das alianças, ponto. Alianças eram o ponto essencial para Lula.
Daí que, em 2002, ele tenha decidido que não ia mais dar sua “trademark” para a esquerda marcar posição e perder a eleição. Condicionou sua candidatura a uma carta branca para fazer alianças, abrir o programa partidário e controlar o marketing político. Lula bem sabia que o PT, ou a “esquerda do PT”, não tinha alternativa a ele. Assinou a “Carta aos Brasileiros”, prometeu segurar a moeda, chamou Duda Mendonça e depois de eleito convidou um deputado tucano para assumir o Banco Central. Sem isso, nunca teria vencido.
Por que Serra não agiu de maneira análoga? Em seu caso “a direita” era como a esquerda do PT para Lula: não tinha alternativa a ele. No entanto, Serra agiu como o Lula que perdia eleições, não como o Lula que as ganhou. Cedeu a seus “supporters” mais do que precisava. A escolha do vice foi típica. Demorou demais; afinal, escolheu um; pressionado, mudou para outro. E se ele não tivesse cedido? O que faria quem o apoiava? Largaria dele?
Quanto aos programas sociais, aqui está o maior problema. Serra defenderia o aumento do salário mínimo em todo o país para R$ 600, a expansão radical do Bolsa Família em valor e em beneficiários, ou essas promessas de fim de campanha foram apenas um jogo eleitoral desesperado? Mais uma vez, os serristas eram críticos acerbos de programas como o Bolsa Família. Mas nem por isso ele parece ter perdido os seus votos, ao defender medidas que seguramente muitos deles achariam demagógicas.
Ou seja, a estratégia de ir para o centro ou mesmo para a esquerda teria sido viável. Serra não perderia votos. Por que, então, não seguiu esse caminho de maneira sistemática? Aparentemente, contrastando com sua imagem de pessoa autoritária, que não admitia divergência, ele deu espaço até demais, em sua campanha, para quem estava à sua direita. Ao contrário do Lula vitorioso, que enquadrou os dissidentes, Serra não demonstrou firmeza. Mais de uma vez poderia ter enquadrado Índio da Costa, Roberto Jeferson ou outros que soltaram demais a língua. Não o fez. Por que, não sei.
O mais delicado é o que diz respeito à relação de Serra com o governo FHC. Ele foi muito criticado, entre os seus, por não elogiar o anterior governo tucano. Mas acho que tinha razão. FHC fez um governo com começo (antecipado: data da adoção do Plano Real), meio e fim (antecipado, também: no segundo semestre de 2002 já mal executava o orçamento). O que FHC tinha de fazer completou. Não poderia fazer mais. Hoje seria muito difícil privatizar os Correios, o Banco do Brasil, a Petrobras. O que foi privatizado assim ficou. A nova moeda continua. Mas, com todo o respeito que merece um de nossos maiores presidentes, isso é história.
Já o que Lula iniciou ainda não se completou. Nossa dívida social é tão grande que vai demorar para ser quitada. O curioso é que provavelmente Serra pensa assim, isto é, ele estaria mais próximo de dar continuidade a Lula – com inúmeras mudanças – do que a FHC. Aqui também, Serra acabou, nem que seja por um silêncio educado, tolerando críticas de quem achava que ele se sairia melhor caso defendesse o legado de FHC, do qual ele não era entusiasta.
Não quero dizer que, sendo desenvolvimentista e apostando na justiça social mais que no monetarismo ou nas privatizações, Serra ganhasse as eleições. Elas não foram fáceis para ninguém. Mesmo com 90% de aprovação, fazer sua sucessora não foi um passeio para Lula. Mas Serra parecia, no limite, estar mais perto de Lula do que de FHC. Isso, para um candidato de oposição, pode ser fatal. Mesmo assim, creio que ele poderia ter-se saído melhor, “ganhar mesmo perdendo”, para usar a expressão de Marina Silva.
Como? Serra poderia ter dado maior importância a suas convicções históricas. Poderia ter insistido no desenvolvimento. Poderia ter cobrado mais o governo Lula pela eficiência no cumprimento de suas metas. Poderia dizer que, em tempos de bonança, Lula abrira demasiados flancos, mas não cuidara de resguardá-los. Poderia questionar o número de universidades e programas federais novos, para ver se efetivamente trarão ganhos que compensem os custos envolvidos. O problema é que quase todas essas críticas incidiriam sobre programas populares, que angariam votos.
Mesmo assim, como ao fim e ao cabo Serra perdeu, talvez conviesse dizer que dificilmente alguém de sua família política, incluindo Aécio, venceria em tais condições; que ele ganharia mais, caso tivesse sido mais duro com seus supostos “supporters” e mais tolerante com os repórteres que lhe fizeram perguntas difíceis; e que Serra provavelmente tinha mais razão, naquela que imagino fosse sua estratégia de campanha, do que seus companheiros de campanha.
Renato Janine Ribeiro, é professor titular de ética e filosofia política da Universidade de São Paulo (USP)

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