domingo, 29 de abril de 2012

FEL

ESPAÇO BICO DE PENA
Blog Palavra Livre
O operário levantou-se às quatro e meia
O dia estava escuro, em lua cheia
Tomou um copo de café muito ralo
Saiu, pegou o trem de sobressalto
Cochilou. Desceu na última parada
Filou um cigarro de algum camarada
Acendeu-o, deu um trago profundo
Dirigiu-se ao trabalho um tanto confuso
Pegou na marreta, destroçou a calçada
Pegou na picareta, feriu a sua alma
A terra era ardilosa, o buraco úmido
Um nó o sufocava, o chão era duro
Labutou, labutou, até sangrar as mãos
Até o seu corpo não sentir o coração
Até os seus músculos se tornarem flácidos
Até os seus olhos se esbugalharem de cansaço
Chegou meio-dia, a fome o convenceu
Abriu a marmita explorada pelos fariseus
A comida requentada tinha gosto de zinco

O gosto da marmita, o gosto do escravismo
A noite foi chegando, o dia calou
O operário deprimido chorou... chorou...
O desgosto da vida refletia em seu rosto
Até a sua alma fugiu do seu corpo
Depois, solitário, murmurou a sua desgraça
Foi ao boteco, encheu a cara de cachaça
Logo houve uma tremenda confusão
O operário endiabrado com um punhal na mão
Furou um, furou dois, quebrou o boteco...
Eram gritos de torturas, do inferno, do inferno
Chegou a polícia, espancou o operário
Era a sociedade formando mais um espantalho
O operário dominado, enjaulado no camburão
A sociedade gritando: canalha!... ladrão!...
O operário indagando: meu Deus, por quê?
A sociedade injusta: tu fizestes por merecer...
O operário pobre, explorado, sem defesa
Não tinha culpa, era mais uma presa...
Era o substrato da desumana humanidade
Vítima do fel cruel da sociedade...
Davis Sena Filho — 07/01/1982

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