domingo, 24 de maio de 2015

O Podemos e os enigmas que vêm do Sul

O Podemos traz em seu DNA a experimentação política dos governos progressistas da América do Sul. Fundado em 2014, o partido de Pablo Iglesias, que, de maneira avassaladora, lidera as preferências eleitorais no país, tem como núcleo um grupo de professores e ativistas que explicitamente tomam os processos constituintes do Sul como principal referência. Quase todos os fundadores passaram pelos governos sul-americanos ao longo da segunda metade da década passada e começo da atual. Iglesias prestou consultoria e fez análises eleitorais para os governos da Bolívia, Venezuela e Paraguai. Íñigo Errejón, considerado o número 2 e principal estrategista do novo partido, atuou sobretudo no Equador e na Bolívia, onde situou o objeto de sua tese de doutorado – um estudo de setecentas páginas sobre a chegada ao poder de Evo Morales e do Movimiento al Socialismo (MAS). “Há quase uma década a América do Sul se converteu no principal e quase único espaço geopolítico de experimentação em sentido emancipador”, escreveu Errejón à revista Viento Sur.1 Outra liderança do núcleo podemista, Juan Carlos Monedero trabalhou diretamente com Hugo Chávez, entre 2005 e 2010, e ostenta um currículo recheado de artigos e capítulos de livros sobre a conjuntura sul-americana. A associação do Podemos – festejado por mídias internacionais de esquerda como o partido que “aprendeu as lições com a esquerda sul-americana” e “corrigiu as lentes eurocêntricas”2 – com o bolivarianismo e o evismo também tem rendido uma campanha de “desconstrução” por parte de grandes jornais do país, como o El Mundo e o El País.
No texto citado da Viento Sur, um semestre antes de o Podemos ser anunciado, Errejón sintetiza o processo de chegada ao poder dos governos progressistas; essa leitura viria a nutrir a base da estratégia do Podemos para a conjuntura espanhola. Para o “pequeno Gramsci”, como Errejón é conhecido nos bastidores, a tomada do poder se deu em dois momentos articulados: um ciclo insurgente e destituinte, seguido de um ciclo institucional e constituinte. Na Venezuela, o primeiro atingiu o ponto mais alto com o Caracazo, em 1989; no Equador, com os levantes populares e urbanos de 1997, 2000, 2001, até a rebelión de los forajidos, de 2005; na Bolívia, com as revoltas da água (2000) e do gás (2003), em meio a uma cauda mais longa de tumultos, marchas e ações de coletivos. Nos três casos, a crise destituinte provocada pelas pressões populares levou à decomposição dos consensos na base das instituições políticas, sociais e culturais, agravando a crise econômica. O descontentamento social horizontal se manifestou na percepção de desgoverno irremediável, partidos corruptos e entreguismo da nação, arruinando a legitimidade do sistema político como um todo.
Para Errejón, a crise destituinte não é suficiente, por si só, para levar a mudanças duradouras. Falta um segundo momento, autônomo em relação ao primeiro, de ocupação efetiva do Estado, a fim de transformar as instituições. Faz-se necessário responder à crise com uma alternativa de poder, uma recomposição dos discursos de legitimidade, que reivindiquem novas identidades políticas e universalidades, ainda que novas. Na América do Sul, para o intelectual espanhol, isso se concretizou com a Revolução Bolivariana, na Venezuela, a Revolução Cidadã, no Equador, e a Revolução Democrática e Cultural, na Bolívia, que protagonizaram a travessia da derrogação à constituição de um novo poder, mediante novas lideranças, assembleias constituintes e uma abrangente rearticulação de pacto social, modelo econômico e relatos de coesão nacional. Errejón também assinala a centralidade de uma liderança capaz de suportar a difícil unidade das coalizões heterogêneas que chegavam ao poder. Respectivamente: Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales, cada qual com suas particularidades, todos em certa medida enunciadores do discurso populista, que opõe o povo sofrido às elites inescrupulosas aliadas ao interesse estrangeiro. Na contramão de um John Holloway, para Errejón é preciso efetivamente tomar o poder para mudar o mundo.
Transpondo ao cenário espanhol, a conclusão do Podemos é que o movimento 15 de Maio (15M) exerceu, de maneira similar, um papel destituinte. Decompôs-se o consenso institucional do Régimen de 1978; a saber, o bipartidarismo entre PP e Psoe, com pano de fundo monárquico e mínimas distinções entre eles. Com a hegemonia política e financeira da Troika, a Europa vive um impasse similar ao que a América do Sul viveu na longa noite neoliberal dos anos 1990. Os indignados e acampados do 15M fizeram o trabalho de desbancar o imperativo de que “não há alternativa” às medidas de austeridade. Portanto, compete agora a uma força política partidária ocupar o vazio deixado pela crise e institucionalizar um novo sentido comum. Nesse projeto tático, o Podemos convoca o protagonismo cidadão e, em chave populista, turbinado pela liderança midiática de Iglesias, dirige uma máquina de guerra eleitoral que opõe a “gente” depauperada pela precarização neoliberal à “casta” corrupta e oligárquica, representada pelos velhos dirigentes dos partidos, os bancos e a Troika. O objetivo é tomar o “centro do tabuleiro”, disputar as maiorias sociais e, como consequência, consolidar o ciclo insurgente do 15M por meio do Estado.
A referência do Podemos aos governos sul-americanos aparece, inclusive, na questão da ruptura econômica. Uma vez no poder, os governos de Venezuela, Equador e Bolívia repactuaram os lucros da exportação de petróleo, gás, minério e commoditiesem geral. Foram feitos investimentos em gasto público, por meio de políticas distributivas que levaram a uma inclusão social maciça e inédita. Contrariando o dogma macroeconômico, as inversões se tornaram o motor de consumo interno e das tentativas de diversificação produtiva, com o fito de, ecoando antigos modelos cepalinos, substituir as importações, fortalecer o mercado nacional e minar as cadeias históricas de dependência, inscritas na divisão internacional do trabalho. Na Espanha, mutatis mutandis, o programa econômico do Podemos consiste em aumentar o investimento social, reposicionar os bancos públicos, auditar as dívidas do país e recuperar o controle estatal sobre setores estratégicos e a política monetária, em tom keynesiano.
O que não aparece na apreensão que os podemistas fazem, entretanto, são as polivalências, tensões e conflitos dos experimentos sul-americanos. Não se podem martelar, em 2015, leituras de conjuntura que seriam plenamente válidas há cinco ou dez anos. Embora os governos de Venezuela, Bolívia e Equador continuem colhendo sucessos eleitorais consecutivos, as limitações dos processos começam a travar o aprofundamento e mesmo a continuação das mudanças. Os efeitos da queda dos preços do petróleo e derivados e o estancamento do boom das commodities têm demonstrado quão malsucedido tem sido o projeto de diversificação produtiva, a capacidade dos governos de mobilizar produtivamente a sociedade e requalificar o desenvolvimento para além da indústria extrativista. É como se o Podemos tentasse resolver o impasse na Europa referenciando-se em experiências que, em 2015, mergulham em seus próprios impasses, no que contribuem razões exógenas e endógenas.
A Venezuela é o caso mais agudo. A queda do petróleo expôs o grau de petrodependência do “socialismo do século XXI”, atiçando a oposição a lançar-se numa campanha destituinte, vetorizando uma indignação para além das camadas mais ricas da população. O país vive hoje uma crise de desabastecimento de gêneros básicos, inflação de 68,5% em 2014 (segundo o BC do país), clima de insegurança e corrupção sistêmica. Essa crise não pode ser explicada apenas lançando mão da gramática anti-imperialista, que se apressa em culpar as elites brancas e demofóbicas associadas a Washington por problemas cujas causas são mais profundas e reduz qualquer tensão a tentativas de desestabilização ou golpe. O coro de intelectuais pró-bolivarianos que rapidamente se enfileiram para enquadrar complexos embates e contradições em nobres batalhas míticas entre dois blocos monolíticos – progressistas socialistas pró-Chávez × restauradores neoliberais pró-Estados Unidos – não contribui para superar a crise de imaginação política que se abateu sobre o governo. Seria tautologia apontar como os Estados Unidos ou qualquer outra economia central manobram para promover seus interesses contra a formação de contrapoderes regionais. Faltaria interrogar as razões do engessamento dos processos democráticos (conselhos, cooperativas, missiones, círculos) e do sindicalismo, cada vez mais submetidos a uma verticalização estadocêntrica que tem drenado o dinamismo e a capacidade regenerativa da almejada democracia socialista – o que o analista argentino Pablo Stefanoni3 chama de passagem do “nacional-popular” para o “nacional-estatal”. As polarizações forçadas têm se tornado um expediente fácil para esconjurar as razões da crise. A coerção estatal exercida pelo governo de Maduro para controlar as ações da oposição, bem como os tumultos que a transcendem, expõe não exatamente a força, mas a debilidade crescente de um projeto político que tem necessitado encarcerar lideranças opositoras e autorizar o uso de munição letal contra manifestantes – ainda que, com frequência, mas nem sempre, igualmente armados.
O Podemos, ademais, parece totalmente dedicado a montar a máquina eleitoral para vencer as eleições, na lógica do ganha-primeiro-depois-vê, sem no entanto debruçar-se na tarefa paralelamente indispensável de um envolvimento direto com os novos movimentos, surgidos ou intensificados com o 15M. Parece assim desconsiderar que o poder do Podemos, em primeiro lugar, deriva da potência social e da multiplicação desses movimentos. Relegando-os a segundo plano, corre o risco de, na segunda página, terminar reocupado pelas forças do mesmoRégimen de 1978 que se propõe a substituir.4 Nisso, o Podemos repercute outro impasse dos governos progressistas, que é seu fechamento sucessivo aos movimentos, cuja força criativa e riqueza conceitual foram tão marcantes durante o ciclo insurgente e que certamente contribuiriam para uma saída virtuosa dos impasses que se avolumam na atual conjuntura.
No Equador e na Bolívia – especialmente com os recentes embates entre governo e indígenas nos casos da exploração do Parque Yasuní-TTL e da construção da rodovia no Tipnis, respectivamente –, os paradigmas do buen vivir(sumak kawsay) e a proposta do Estado plurinacional têm sido diluídos pelo modelo econômico extrativista, com o argumento de que integrar-se às cadeias internacionais de capitais continua sendo o horizonte insuperável da governabilidade. Quando as comunidades do Tipnis na Bolívia ou do Sarayaku no Equador dizem “não” a mais poços petrolíferos, barragens, mineração e grandes vias, por trás existe um “sim” maior – que é outra maneira de organizar a produção, as relações e a vida.5 No Equador, a principal organização indigenista, a Conaie, revogou o bastão de mando que havia outorgado a Correa depois do acionamento do aparato policial-penal para criminalizar dissidentes. Na Bolívia, parte considerável de duas das principais organizações indígenas, o Conamaq e a Cidob, se afastou do governo e acusa-o de interferência indevida na autonomia de suas lutas.
O protagonismo cidadão que invoca o Podemos vale para o cenário espanhol pós-15M e para as populações da América do Sul, depois de transformações profundas e duradouras. Mais do que meramente beneficiadas pelas políticas sociais, elas reinventaram a economia “desde baixo” e tomaram posse das ferramentas políticas e dos novos arranjos produtivos, de que são a carne viva. Assim como o 15M, na esteira das revoluções árabes, essa composição social emergida nos últimos dez anos repercute uma juventude superconectada em rede, mas também decidida a se organizar nas ruas, praças e bairros, a reorganizar-se política e produtivamente numa nova realidade.
A referência sul-americana na Europa corta, portanto, para os dois lados. Os impasses do Sul não são os mesmos que os do Norte, mas se comunicam na medida em que novos sujeitos sociais se debatem para exprimir-se. Lá, os novos movimentos do 15M parecem se imantar no Podemos como uma tática eleitoral, mas certamente não têm como se acomodar na quadratura populista do projeto, demasiado hegemonista para integrar as muitas singularidades envolvidas. A América do Sul é laboratório para o sul da Europa, e vice-versa. O laboratório de lutas desde pelo menos o zapatismo continua sendo global.
No desdobramento desse quiproquó vigoroso de referências e experimentos, o desafio consiste em saber como garantir uma abertura que se coloque nos fluxos criados pelas mobilizações constituintes dos últimos anos. Como um partido ou governos eleitos poderiam se deixar renovar e recuperar vitalidade, com base nas novas composições sociais e suas formas políticas desafiadoras? Como instaurar um novo círculo virtuoso? O Podemos é lançado já nas dores do fim de um ciclo ou ele nos reabre à produção de novos espaços de fazer política? Como evitar o Termidor? Se é cedo para respostas, ainda não é tarde para perceber que a saída dos impasses do eixo Sul passa por assumir, sem meias palavras, os enigmas inerentes à continuação do processo constituinte.
Alexandre Fabiano Mendes é professor de Direito da Uerj; e Bruno Cava é mestre em Filosofia do Direito e escritor
Fonte: diplomatique

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