Por Emiliano José (www.emilianojose.com.br)
Às quartas e sábados, quebrava-se a rotina da prisão. Duas horas de visita de familiares tornavam a atmosfera menos cinzenta. Descíamos da Galeria F, que desembocava num salão cheio de bancos, onde recebíamos os que tinham a coragem de ir à Penitenciária Lemos Brito, na Mata Escura.
É, porque, para além do afeto, do amor, do carinho de cada um, impunha-se uma dose de coragem para o gesto.
A ditadura desconfiava até da sombra, via em todos um inimigo, quanto mais daqueles que visitavam subversivos, terroristas, os comunistas que comiam criancinhas. Nenhum dos que passaram por aquela experiência se esquece daquelas quartas e sábados. E não se esquece especialmente de alguns anjos que coloriram nossa existência durante aqueles anos. Homens e mulheres.
Quero destacar, de modo geral, a presença das mulheres. Das companheiras dos que estavam presos, das militantes e, de modo especial, das mães. Parece que elas, as mulheres se agigantam nos momentos de perigo.
Parece que se entregam de modo resoluto em defesa de quem elas amam. Desafiam o dragão mesmo quando ele solta fogo pelas ventas. Se fosse o filho, se fosse a filha, então, essas mulheres não mediam os riscos, não olhavam para o tamanho do perigo, não se assustavam com a fama do torturador.
Eu e tantos companheiros que passamos pelas prisões brasileiras fomos testemunhas desse destemor. Às vezes, nos perguntávamos onde elas iam buscar tanta coragem.
Parece, parafraseando o comandante Carlos Marighella, que elas não tinham tempo para ter medo.
Sem dúvida, a presença delas alegrava as cadeias brasileiras. No caso da Lemos Brito, tornava tudo mais colorido. Eu tenho escrito uma série de livros denominada Galeria F – Lembranças do Mar Cinzento. Boa parte dos capítulos desses livros – até agora são três – foram publicados primeiro aqui neste jornal.
E quando falo em mar cinzento é porque a minha impressão é que na cadeia não existia outra cor senão o cinza. Era um mar de cinza.
Pode até ser que a minha imaginação tornasse o cinza ainda mais avassalador. E o cinza tem algo de lúgubre e de melancólico.
Uma espécie de inimigo da alegria. E talvez não seja acaso que seja tão usado e abusado nas cadeias. Ah, a nossa farda era cinza. Havia apenas uma tarja branca na gola. O resto, cinza-escuro. E quando as visitas chegavam, era uma festa de cores, era uma espécie de ligação com a vida, que havia sido cortada com o encarceramento.
Eram várias as mães e companheiras que nos visitavam. O espaço não permite que eu fale de todas. Quero hoje homenagear uma mulher especial. Pequena, suave, delicada, uma voz que quase acaricia quem a ouve, gestos de uma mãe amorosa para com todos que dela se aproximem, uma alma do tamanho do mundo. Iaiá. Nós sempre a chamamos assim. Todos a chamam assim. Não é preciso mais do que isso.
Ela chegou como a mãe de Renato Afonso e tornou-se mãe de todos nós. Rapidamente nos conquistou a todos, nos contagiava com sua alegria, com seu entusiasmo pela vida.
Deixamos de conhecê-la apenas como a mãe de Renato Afonso. E desde lá tornou-se Iaiá para todos nós.
Tenho o privilégio de falar com ela de vez em quando, o privilégio de contar com o carinho dela. Logo depois de viver a emoção de vê-la na Assembleia Legislativa no dia em que recebi o título de Cidadão Baiano, de abraçá-la com todo carinho, recebi uma carta dela, escrita com sua letra clara, com seu português límpido, dizendo-me coisas que me honram demais.
Quando comemoramos os 30 anos da anistia, no Forte de Santo Antônio, acontecimento que contou com a presença de centenas de ex-presos e familiares e, inclusive, do governador Jaques Wagner, me emocionou ouvi-la defender a punição aos torturadores.
Sua extrema sensibilidade de mulher só reforça sua consciência política, seu amor pela humanidade.
Peço licença aos familiares dela, peço licença ao meu amigo Renato Afonso, para homenagear a mulher, Iaiá. Homenagear a mãe coragem de todos nós.
Publicado no jornal A Tarde (05/07/2010)
Um comentário:
Belo! Belíssima homenagem caro companheiro Emiliano! Imaginei-me agora abraçando todas as milhares e milhares de mulheres mães, filhas, irmãs, netas...que sobreviveram as amargas, duras penas,dor tamanha que nos trouxe essa maldita ditadura que tanto nos fere ainda a alma...Valeu companheiro, sinto-me abraçada por ti também.
Grande abraço, Lucia Irene Reali Lemos (filha sobrevivente do jornalista e radialista Rubens Lemos que foi exilado, preso resistiu às torturas e só teve sua anistia "post mortem" em 18 de outubro de 2004)
Postar um comentário